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sexta-feira, 11 de abril de 2025

21 de abril de 1961: Os primeiros soldados portugueses partem para a guerra colonial

 

Fotos tiradas por Fernando Mariano Cardeira aquando do embarque do seu irmão para Moçambique, a bordo do paquete Império, a 12 de Abril de 1969.

21 de abril de 1961: Os primeiros soldados partem para a guerra a bordo do Niassa

Neste dia, mais de 2.000 soldados rumavam a Luanda. Foram combater um inimigo que não era o seu, por uma pátria que os transformou em carne para canhão. Fotos de Fernando Mariano Cardeira.

Para Angola, rapidamente e em força, clamava Salazar a 13 de abril de 1961, uma semana antes de partirem os primeiros contingentes de tropas portuguesas: a 19 de abril, por via aérea e, a 21 de abril, por via marítima.

Há exatamente 60 anos, mais de 2.000 soldados embarcaram no Niassa, o primeiro paquete fretado para transporte de militares e de material de guerra, por portaria de 4 de março de 1961. O Niassa zarpou do cais de Santa Apolónia a 21 de janeiro, chegando a Luanda 10 dias mais tarde, a 1 de maio, uma segunda-feira.

1961 e a anunciada queda do colonialismo português

Entre finais de 1960 e inícios de 1961, o mito da pax imperial portuguesa é fortemente abalado. O impacto do processo de independência do antigo Congo belga terá tido repercussões consideráveis, sobretudo entre os bacongos do Norte de Angola, trazendo expectativas de libertação e independência.

Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961

A revolta da Baixa de Cassange, uma região que, em duas extensas zonas, se encosta ao Congo, tornar-se-ia, por sua vez, uma espécie de ensaio geral para a guerra. Na Baixa de Cassange vigorava o regime da cultura obrigatória do algodão. Os agricultores e as suas famílias tinham de cultivar o algodão, em detrimento de culturas que assegurariam a sua subsistência alimentar, e vender a sua produção à Cotonang. Esta companhia estipulava preços miseráveis e ainda tinha poder para classificar como de 2ª o algodão de 1ª. Na região grassava uma pobreza extrema e os camponeses eram sujeitos a todo o tipo de violência e arbitrariedades. No final de 1960, os camponeses começaram a parar a produção, a recusar pagar impostos e a insurgirem-se contra a Cotonang e os colonos portugueses. A 4 de janeiro de 1961, negaram-se a voltar ao trabalho e queimaram as sementes distribuídas pela companhia. A partir daí, deu-se o esmagamento militar da revolta. Entraram em campo a 3ª e a 4ª Companhias de Caçadores e a Força Aérea. Várias sanzalas foram totalmente dizimadas e muitos dos seus habitantes mortos.

O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola

por Diana Andringa

Entretanto, na madrugada de 4 de fevereiro, quando a revolta do Cassange ainda não tinha sido contida, guerrilheiros africanos atacaram, em Luanda, a casa de reclusão militar, a cadeia administrativa de São Paulo e o Quartel da Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública. O objetivo era libertar os presos políticos e arrecadar armamento. No dia seguinte, no enterro de alguns soldados mortos, eclodem conflitos. A repressão colonial é feroz. Perante as represálias, os guerrilheiros voltam a atacar a cadeia de São Paulo e a Companhia Indígena a 11 de fevereiro.

15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola

Pouco mais de um mês depois, dá-se a sublevação do 15 de março, protagonizada pela UPA (União das Populações de Angola). Os ataques foram fulminantes e a violência e ferocidade dos métodos utilizados atrozes. Brancos, mestiços e alguns negros foram alvo da barbárie. Ao contrário do que foi propalado, estes ataques não constituíram uma surpresa para as forças portuguesas. Já tinham existido vários alertas da própria PIDE e das autoridades administrativas no que respeita à iminência de um ataque. No entanto, o Governo de Salazar nada fez. Ao terror negro, os colonos responderam com terror branco, agravando o fosso racial de forma que se provou ser irreversível. A vaga repressiva do regime salazarista vai atingir vários religiosos e determinar a sua prisão, sob a acusação de incitar a revolta. Entre eles, o cónego Manuel das Neves.

A nível interno, o ano de 1961 também trouxe alguns revezes a António de Oliveira Salazar. O assalto ao paquete Santa Maria, a 22 de janeiro, conduzido por um alto dignitário do Estado Novo, Henrique Galvão, expõe a vulnerabilidade do regime. A 13 de abril, o ditador português é confrontado com uma tentativa de golpe de Estado por parte de homens como o ministro da Defesa Nacional, general Júlio Botelho Moniz, o ministro do Exército, coronel Almeida Fernandes, o subsecretário de Estado do Exército, tenente-coronel Costa Gomes, e o Chefe do Estado-Maior-General (CEMGFA), general Beleza Ferraz. Na noite desse mesmo dia, Salazar surge perante as câmaras da televisão portuguesa para anunciar a remodelação governamental e explicar porque assumia a pasta da Defesa: “se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional [...] a explicação concretiza-se numa palavra e essa é Angola [...] Andar rapidamente e em força é o objetivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão [...] a fim de defender Angola e com ela a integridade da Nação”. Uma semana depois, partem então os primeiros contingentes de tropas portuguesas para Angola.

O ano de 1961 vai ficar ainda marcado por acontecimentos como a publicação, em janeiro, do programa para a democratização da República, pelo Oposição Democrática, em que se repudia qualquer manifestação de imperialismo colonialista; o “salto” dos estudantes da Casa de Estudantes do Império, que irão engrossar as fileiras dos Movimentos de Libertação Nacional; e o desvio, a 10 de novembro, por parte de Palma Inácio e Camilo Mortágua, do Super Constellation da TAP, do voo Casablanca-Lisboa. Este foi o primeiro desvio de um avião comercial de que há registo internacionalmente. A ação, que ficou conhecida como a “Operação Vagô”, incluiu o lançamento de 100 mil panfletos sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro.

Goa, ou o princípio do fim

por Fernando Rosas

A nível internacional, a 15 de março, é aprovada uma moção do Conselho de Segurança da ONU a condenar a situação em Angola, votada pelos Estados Unidos e pela União Soviética, pela primeira vez; e a 4 de abril é aprovada uma moção a favor da autodeterminação de Angola pela Assembleia Geral da ONU. Neste mês é ainda instituído pela ONU um Subcomité dos Cinco, a fim de investigar a situação relacionada com os acontecimentos em Angola. A 1 de setembro tem início a I Conferência Plenária dos Países Não Alinhados em Belgrado, que apela à ajuda internacional do povo angolano, e a 27 de novembro é criado, no seio da ONU, o Comité da Descolonização. O final do ano também não trouxe boas novidades a Salazar, com a apresentação, a 19 de dezembro, da rendição das tropas portuguesas ao comando indiano. E Goa foi o princípio do fim.

Uma Guerra injusta, imoral, maldita



Em 1961, embarcaram 33 mil homens, os primeiros dos 800 mil enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e Moçambique. Até à Revolução de 1974, mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra foram transportados para as ex-colónias por via marítima.

Os paquetes mais utilizados para o efeito foram o Vera Cruz, que realizou o maior número de viagens, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje. Em 1961, nove paquetes em missão militar realizaram 19 viagens com destino aos palcos da Guerra Colonial. O número de viagens aumentou para 27 em 1963 e para 33 em 1967. O Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, passou a ser local privilegiado de escoamento de tropas e colonos.



“Os soldados partiam para Angola, com a confiança vinculada no rosto e a serena garantia de que iam combater por uma causa justa (…) Lisboa viu-os partir. E as esposas, mães e irmãs acenaram-lhes com orgulho”. Este era o relato da propaganda do regime.

Mas os soldados, na sua grande maioria, eram pouco mais do que rapazes. Muitos apenas conheciam as aldeias onde tinham nascido e os quartéis onde fizeram a recruta. E mal sabiam ler e escrever, ou nem isso. Não tinham qualquer ideia do que os esperava em Angola. Os primeiros contingentes foram aclamados como heróis à chegada a Luanda, mas estavam mal preparados, não estavam devidamente equipados e nem sequer sabiam bem o que estavam ali a fazer. Médicos militares no terreno alertavam para o alarmante estado de subnutrição e desidratação dos soldados e a inexistência de cuidados de saúde adequados.

Wiriamu: O massacre esquecido

Os militares portugueses enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e Moçambique ocuparam, pilharam, queimaram aldeias, torturaram, mataram. São vários os relatos de agressões sexuais contra as mulheres africanas e, inclusive, de violações em grupo. O relato do massacre de Wiryamu, Chawola e Juwau (1972), no distrito de Tete, em Moçambique, levado a cabo por tropas coloniais portuguesas e pela PIDE-DGS, dá-nos conta das atrocidades, dos crimes hediondos cometidos durante a Guerra Colonial, com o extermínio de comunidades inteiras – incluindo crianças, mulheres, idosos – com requintes de uma perversidade sem limites.

Os soldados portugueses, por sua vez, serviram como verdadeira “carne para canhão”.



Muitos não voltaram, foram enterrados no cenário de combate ou os seus corpos não foram encontrados. Outras famílias puderam enterrar os seus entes queridos. Às famílias dos soldados mortos, foi cravada uma medalha ao peito, nas cerimónias das comemorações do dia de Portugal.

Estilhaços de uma guerra maldita

Os soldados que voltaram trouxeram as memórias de matar, ver morrer, de morrer aos poucos. Os estropiados foram rapidamente escondidos pelo regime fascista, que não queria ver divulgados os horrores da guerra. Uns, atirados para o Depósito de Indisponíveis, na Graça, em Lisboa. Outros, reencaminhados para as suas aldeias, esquecidos, sem qualquer possibilidade de recuperarem as suas anteriores ocupações.

Às mulheres portuguesas foi atribuído o papel de apoiar o esforço de guerra: parir guerreiros para a defesa do “Império” e apoiá-los, bem como aos maridos, irmãos e todos os homens enviados para as ex-colónias; apoiar na assistência aos feridos e desprotegidos; trabalhar nas fábricas de munições. Foi-lhes imposto um sofrimento silencioso, porque ir para a guerra só podia ser motivo de orgulho. E herdaram o stress pós-traumático daqueles que de lá vieram.




Lá, as mulheres africanas guardam as cicatrizes das agressões sexuais e cuidam dos filhos deixados pelos soldados portugueses, nunca reconhecidos pelos pais e pelo Estado Português.

As feridas abertas da Guerra Colonial

por Mariana Carneiro

A Guerra Colonial durou mais do dobro da Segunda Guerra Mundial e fez milhares de mortos portugueses e africanos. Este conflito representou, em termos humanos, um esforço cinco vezes superior ao que os EUA mobilizaram para o Vietname. Apenas entre o contingente português, contabilizaram-se 8.831 mortos, 30 mil feridos, 4.500 mutilados, 14 mil deficientes físicos. Mais de 100 mil diagnosticados com perturbação de stress pós-traumático.

A devastação causada pelo colonialismo português nos territórios das ex-colónias tem ainda repercussões profundas, ao ter comprometido abruptamente o desenvolvimento económico, social, cultural das suas sociedades, espoliado os seus bens e os seus recursos, escravizado, violentado e tentado aniquilar a identidade e a cultura dos seus povos.


FONTES:

AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos Gomes. Guerra Colonial. Edição: Editorial Notícias, abril de 2000

CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena. As Voltas do Passado - A Guerra Colonial e as Lutas de Libertação. Editor: Tinta da China, junho de 2018

DHADA, Mustafah. O Massacre Português de Wiriamu - Moçambique, 1972. Edição: Tinta da China, outubro de 2016.

GOMES, Catarina. Furriel não é Nome de Pai. Lisboa: Tinta da China, Edição:05-2018.

MATEUS, Dalila Cabrita. Angola 61 - Guerra Colonial: Causas e Consequências. Edição: Texto Editores, janeiro de 2011.

RIBEIRO, Margarida Calafate. África no Feminino: as Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial. Porto: Afrontamento, 2007.

ROSAS, Fernando. História a História – África. Edição: Tinta da China, março de 2018 ‧ ISBN: 9789896714215

Arquivo Digital do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra

Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961, artigo de Aida Freudenthal, publicado no Esquerda.net

15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola, artigo de Maria da Conceição Neto, publicado no Esquerda.net

O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola, artigo de Diana Andringa, publicado no Esquerda.net

Goa, ou o princípio do fim, artigo de Fernando Rosas, publicado no Esquerda.net

Wiriamu: O massacre esquecido, artigo de Carmo Vicente, publicado no Esquerda.net

Estilhaços de uma guerra maldita, artigo de Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net

As feridas abertas da Guerra Colonial, artigo de Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net

 

Artigo partilhado na íntegra e disponível em https://www.esquerda.net/artigo/21-de-abril-de-1961-os-primeiros-soldados-partem-para-guerra-bordo-do-niassa/73984


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Trabalho escravo nos arrozais de Alcácer do Sal durante o salazarismo

 


A estranha gente dos arrozais 

Um excelente artigo publicado no blogue O SAL DA HISTÓRIA.


Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.

Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.


Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.


As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.


Mondavam, ceifavam, faziam o que fosse preciso, quase sempre vergadas sobre si próprias. Descalças e com água até meio da perna, mal tinham ordem de levantar os olhos, quanto mais a cabeça, que o capataz estava à espreita, de vara na mão.

Poucos eram os momentos de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente relatavam um pouco das suas sofridas existências.


Para se abrigarem do sol inclemente e outras agruras, inventaram a curiosa indumentária que junta saias – arregaçadas – e calças – que protegiam do restolho áspero e das sanguessugas, mas não do “mal da monda”, as bolhas e feridas deixadas pelos pesticidas, tratadas depois com pomadas e mezinhas. Lenço na cabeça, tapando parte do rosto, manga comprida ou meias de senhora a cobrir os braços.



E chapéu. Este, artigo de luxo mais do que de utilidade, era “obrigatório” e chegava a custar cinco dias de trabalho. Constituía o orgulhoso rasgo de vaidade feminina, tantas vezes decorado com fitas, flores, objetos leves e a fotografia do moço eleito pelos seus corações.

Estas mondinas, como por aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto, amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.

A “malta” e a gente de Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e contribuía para que, por norma, morressem cedo.

Os de fora vinham em setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.

 



Viviam inevitavelmente sob o telhado do dono da herdade, em imensos "casões", “aos cem de cada vez e mais, sobre uma faixa de palha de arroz ou de mato, cobertos com a sua manta” ou, na melhor das hipóteses, dormiam em esteiras de junco suspensas das paredes. Camas eram raras.

No campo, os do Alentejo tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à hora da refeição (na imagem).

Para alimentar os da “malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.

 


Ao sábado largavam o trabalho com luz e acorriam à vila a gastar a rala semanada. Folgavam ao domingo e era neste dia ou quando o patrão consentia numa adiafa – a comemorar o fim da colheita, por exemplo - que se entregavam a um bailarico, que era o único divertimento conhecido.

Apesar de homens e mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um casal no rancho.


 Nasceram assim autênticas aldeias, que faziam lembrar terras africanas e que já não existem. Também assim se criaram e fixaram muitas famílias que se tornaram alcacerenses.

Hoje, o arroz está totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também nos serviços. Os migrantes são outros.

 À margem

Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.

Diferente do tradicional cante, é uma moda de improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.

Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.

Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.

Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e especial enfoque no Ladrão do Sado.

Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles trabalhadores que pouco ou nada tinham.

É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos, pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas raízes peculiares.

 Mas isso é outra história…


Agradeço a Maria Antónia Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.

 

Fontes

Diário de Lisboa, 01.10.1945, 03.10.1945, 04.10.1945.

 António José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado - YouTube

Cortesia de Miguel Ângelo Catarino Vaquinhas

Município e Direcção Regional da Cultura apostados em preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)

Isabel Castro Henriques, Os pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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Disponível em https://osaldahistoria.blogs.sapo.pt/a-estranha-gente-dos-arrozais-12377


 


domingo, 24 de julho de 2022

Supremacismo branco e populismo nacionalista de extrema-direita estão a ser promovidos por Donald Trump


Fonte da imagem: https://rr.sapo.pt/noticia/mundo/2024/09/13/trump-quer-deportar-haitianos-e-biden-pede-que-ataques-parem/393582/

 A mensagem de Donald Trump foi clara para os seus apoiantes e adversários quando fez “a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de ‘cruzada’ armada”, diz ao Expresso a historiadora Irene Flunser Pimentel  - CRISTINA PERES

 O assassínio de George Floyd por um polícia em Mineápolis expôs ainda mais a deriva autoritária do Presidente dos Estados Unidos. A América está na rua há uma semana, em protestos, e Donald Trump ameaça enviar o exército para alcançar o que considera que nem a polícia nem a Guarda Nacional conseguiram ainda: repor a ordem.

Para ajudar a ler a tradição de violência racista que se reconhece nos Estados Unidos e a ultrapassagem de limites que seria impensável até há pouco, o Expresso pediu à historiadora Irene Flunser Pimentel que comentasse a ameaça à democracia a que se assiste.

Doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, Irene Pimentel é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Nova-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É co-autora e autora de extensa bibliografia, que inclui “A História da PIDE” (2007), “Espiões em Portugal durante a II Guerra Mundial” (2013) e “História da Oposição à Ditadura em Portugal” (2014). No passado dia 28 de maio, deu uma aula online sobre o golpe que, naquele mesmo dia de 1926, fez ascender o fascismo em Portugal.

Numa série de artigos de opinião em jornais consagrados lê-se que o caso George Floyd decorre de uma tradição de violência nos EUA, mas que desta vez se ultrapassou uma fronteira. Concorda?
Subjetivamente, diria que esta fronteira foi ultrapassada devido a ter sido one too many e porque estamos no século XXI e Obama foi Presidente dos Estados Unidos. Mas, na realidade, penso haver uma razão muito objetiva: o assassínio foi filmado, durou muitos minutos, foi precedido por tortura e à vista de muitos, que chamaram a atenção para o que estava a acontecer e para a súplica de George Floyd, segundo o qual “não podia respirar”.

Penso ter funcionado a situação de empatia (colocar-se na posição da vítima), embora, desgraçadamente, ninguém tenha conseguido salvar George Floyd, um ser humano, com nome e identidade. Devo dizer que fiquei muito revoltada, mas não consegui partilhar aquele vídeo que retratava uma situação limite de crueldade desumana e infamante. Manifestei-me sobre o caso, mas sem mostrar a situação de sofrimento e morte. Depois, também foi terrível a atitude dos “colegas” polícias, de total cumplicidade e indiferença pelo que o assassino estava a fazer, quando a obrigação de qualquer ser humano é salvar uma pessoa em perigo. O que todos sentimos, de forma impotente, é que deveríamos, e os que assistiam deveriam ter reagido fisicamente contra o agressor. Não sei o que teria acontecido em Portugal, onde por vezes há também violência policial e racista. Mas sei que nos EUA até se aprende a não responder ou reagir mal à polícia, que está armada até aos dentes.

O joelho no pescoço, a subjugação prolongada pelo polícia pareciam afirmar “faço o que eu quero”, uma clara “peça” de informação dirigida aos defensores da supremacia branca, que devem todos ter entendido que “é tudo nosso”.
Também me ocorreu precisamente isso. Lembramo-nos de algo que hoje – felizmente – também já é criminalizado se for feito a animais (aqui ainda temos as touradas). Também nos fez recordar a escravatura e o colonialismo, até porque – ainda não o disse, mas é relevante – a vítima é um afro-americano e o algoz um branco, pelos vistos cioso de expressar o que pensa ser a sua supremacia (de assassino). Penso que o supremacismo branco, o populismo nacionalista de extrema-direita tem feito rapidamente um caminho que era impensável há uns anos, pois é potenciado pelo próprio Presidente. O que tudo também revela é que o mal, o racismo, o supremacismo estão banalizados e normalizados, neste século XXI, e são incentivados a partir de cima, numa sociedade e numa situação política que guarda aspectos democráticos.

Ou seja, estamos baralhados?
Estamos baralhados, mas não deveríamos estar, com a possibilidade de crimes e a falência da ética, escassos 80 anos históricos após o Holocausto e a II Guerra Mundial. E com aspetos semelhantes e reconhecíveis com os anos 20 e 30 do século XX.

Donald Trump apoia-se no último slogan da sua campanha de 2016 ainda por esgotar, “Law & Order”, dado que o estado da economia e a subida do desemprego denunciam a falência do “Make America great again”. A deriva autoritária do Presidente põe em causa outros níveis do poder, desacreditando os governadores dos estados por não serem capazes de atirar a matar, em último caso. Qual será o limite? Uma guerra civil?
A expressão é mesmo “Law and order” against “Law and order”, através desta deriva autoritária, que já se revelava mas a partir de ontem subiu um patamar mortal, e com o apoio de parte dos norte-americanos. Trump e os seus estão acossados, com a situação económica e de desemprego e com a pandemia, que não conseguem debelar nem atenuar e que lhes pode retirar – oxalá – a vitória nas eleições de novembro. Mas essa deriva já era muito evidente na ocupação de lugares na Justiça, na manipulação da verdade e na utilização da comunicação social. Ontem [segunda-feira 1 de junho] assistiu-se a uma terrível novidade: após já ter tentado colocar em causa o poder dos governadores e dos mayors no desconfinamento durante a pandemia Trump falou com eles – parece que na sequência de um telefonema com Vladimir Putin (!) – dizendo que eram moles se não atuassem de forma repressiva. Depois fez o discurso da autoridade (autoritarismo), em que a palavra “dominar” surgiu várias vezes, afirmando que chamava o Exército, o que penso não se poder fazer internamente para colocá-lo contra os norte-americanos. E, após dizer isso tudo numa conferência de imprensa em que não admitiu perguntas, caminhou até ao carro, para se dirigir em comitiva, com filha, genro e vice-presidente, até à Igreja de Washington, à porta da qual tirou uma foto de Bíblia na mão. A bispa já condenou esse aproveitamento da sua Igreja. A mensagem foi clara, para apoiantes e adversários: a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de “cruzada” armada. Em simultâneo as televisões mostravam, a polícia (não a de Washington, como já foi esclarecido), mas a federal, que de imediato varreram com brutalidade as ruas de manifestantes pacíficos, antes de vigorar o recolher obrigatório decidido pelas autoridades de DC [Distrito de Colúmbia, onde fica a capital dos EUA]. Tudo filmado e reportado por dezenas de jornalistas e fotógrafos. O que me faz dizer que a coreografia – à boa maneira fascista – foi toda minuciosamente organizada para os seus apoiantes, que continuam a existir, faça Trump o que faça. Não foi ele que disse que, mesmo se matasse alguém na rua, a sua popularidade não desapareceria? Penso que o termo guerra civil é muito forte e não deve ser gratuitamente usado, mas o que ele sempre fez e está a fazer é dividir os norte-americanos, para a guerra civil. Trump já começou a guerra civil, que agora militarizou e policiou. Ainda hoje [terça-feira 2 junho] uma amiga norte-americana revelou-me o tremendo medo em que está, pois as pessoas não estão preparadas para esta ascensão da violência.

Será tudo isto possível porque Trump vive isolado numa lógica de aparições para a TV e palavras de ordem e incitamento à violência via Twitter. De que pode valer-lhe o apoio da extrema-direita, dos supremacistas brancos, do Klu Klux Klan e de outros poderes subterrâneos?
O homem é um narcísico que criminosamente só surge na televisão para dizer disparates (que os seus apoiantes adoram) e mentiras e atiçar através do Twitter. Não disse ele, contra a ciência, que tinha remédio para o covid-19? Injetar detergente, expor-se a ultravioletas e tomar o medicamento contra a malária. É um especialista nas fake news, que, ao fazer equivaler verdade e mentira, eliminam qualquer ética. Trump é o verdadeiro populista demagogo, manipulador com frases simples e curtas, que ele cultiva com perícia – e está a ser aconselhado nisso –, as suas aparições como homem providencial. Não conheço suficientemente os EUA para poder dizer até que ponto a extrema-direita, KKK e outros mais subterrâneos são eficazes. Mas sabe-se que estão a potenciar a violência das manifestações, que Trump atribui exclusivamente ao movimento Antifa e a “anarquistas”, quando isso serve os seus propósitos de desestabilização e desordem. As aparições a favor de Trump e do desconfinamento de gente armada nos EUA banalizaram a extrema-direita, à maneira das S.A. na Alemanha nazi. Eles não pareciam muito numerosos, mas podem ter querido dar essa aparência.

Um ex-responsável por uma pasta da justiça escreve no “The Guardian” que Trump já não preside a nada, que se demitiu de administrar, que não trata da crise que tem em mãos, só incita à divisão, que declarou o poder central não responsável pelo combate à pandemia atirando o ónus das dificuldades para os governadores... Como analisa esta reação?
Li esse artigo e penso que tem toda a razão. Trump joga golfe, diz disparates e mentiras, mas não governa nem administra; nem ninguém por ele. Curiosamente, nunca se foi tão longe na opinião pública na condenação e crítica a Trump. Mas o problema é até esse, não serve de nada, pois quem lê “The Washington Post”, “The New York Times” e vê a CNN não são os mesmos que veem a Fox News. Mas os EUA ainda não parecem estar ao nível do Brasil e espero que as instituições democráticas, o Congresso, os mayors, os governadores, a comunicação social (que não está parada) e o aparelho de justiça – aquele ainda não tomado por Trump – reajam. Até já houve uma tentativa de impeachment que deu em nada!

Gostaria que identificasse as atitudes desta administração que correspondem ao modus operandi da extrema-direita. De fascistas? Há ressonâncias de outros tiranos? Ou de ditaduras, se for o caso.
Assim como nós conhecemos a História – aqueles que a conhecem – também a extrema-direita nacionalista, supremacista, racista e xenófoba a conhece. Grupos de extrema-direita paramilitares introduzem-se nas manifestações de protesto contra o crime perpetrado contra George Floyd para iniciar a violência que, segundo dizem, trará a “nova América”. Só não falo em fascismo, enquanto historiadora, pois a história não se repete e o fascismo fez parte de um determinado contexto histórico mundial, que não é o mesmo do dos anos 1920 e 1930. Mas, enquanto cidadã, não me repugna falar de fascismo, pois – mal ou bem – clarifica e caracteriza aquilo de que estamos a falar e produziu determinados resultados monstruosos. Desde que há escrita, sabemos que o ser humano não se modificou muito, desde o Egito antigo, Grécia e Roma. Sabemos o que é o poder e a tirania, e como funciona, das tragédias gregas a Shakespeare. Hoje [terça-feira 2 de junho], uma historiadora norte-americana afirmou que já esperava há muito o que se passa desde que Trump foi eleito. Nunca pensei que fosse atuar de forma democrática, atendendo aos seus antecedentes (nem Bolsonaro), apenas não sabia como iria atuar para acabar com a democracia. Temos de começar a falar assim: a democracia está em perigo e todos somos poucos para defendê-la. Primeiro, foram eleitos os candidatos a ditadores, depois ocuparam os lugares na Justiça, fizeram jornais e canais televisivos e usaram as redes sociais, muito adaptadas ao populismo. O que nos baralhou um pouco relativamente ao fascismo foi que estes candidatos não precisaram de ilegalizar e proibir partidos nem instaurar a censura. Dividiram tudo e todos, fizeram equivaler a verdade à mentira e diabolizaram os adversários políticos e as elites, erigindo-os como inimigos principais do “povo”. Há aspetos parecidos com o nazismo: a escolha de bodes expiatórios, a exploração da insegurança e dos medos da população, a banalização da violência e do racismo, bem como a transformação da ética e da justiça nos seus contrários. Hannah Arendt avisou que, na Alemanha nazi, foram raros os alemães que se ergueram contra o regime, a violência contra os “outros”, fossem adversários políticos ou raciais, porque é difícil usar o imperativo categórico kantiano e distinguir o bem do mal e agir em conformidade. E é sobretudo difícil quando o crime vem de “cima”. Só espero que nós hoje consigamos defender a democracia e a pandemia não é boa conselheira.


Publicada em https://irenepimentel.blogspot.com/2020/06/supremacismo-branco-e-populismo.html?spref=bl 03.06.2020 às 13h00 

domingo, 9 de janeiro de 2022

O homem do coração de ferro (excelente e dramático filme sobre o terror nazi)


 

Título original: O Homem do Coração de Ferro 


 

De:   Cédric Jimenez


Com:  Rosamund PikeMia WasikowskaJason ClarkeJack O'Connell


Género: Drama, Biografia


Classificação: M/16


Outros dados: GB/FRA/EUA/BEL, 2017, Cores, 120 min.

 

  

Alemanha, 1942. O poder do III Reich está no auge. Josef Gabcík e Jan Kubiš, dois pára-quedistas checos treinados pela resistência inglesa, são enviados a Praga para executar uma missão ultra-secreta: assassinar Reinhard Heydrich, chefe dos Serviços Secretos das SS e da Gestapo, a quem Hitler chamava "o homem com coração de ferro". Heydrich foi um dos ideólogos da chamada Solução Final, um plano de aniquilação total do povo judeu na Europa, formalizado na Conferência de Wannsee (Berlim), a 20 de Janeiro de 1942. Embora com muitas dificuldades, a missão de Gabcík e Kubiš acabou por ser bem-sucedida. Porém, a morte do oficial causou terríveis danos colaterais, com milhares de pessoas a serem enviadas para os campos da morte devido a represálias dos nazis.

Com realização de Cédric Jimenez, um filme dramático que adapta a obra "HHhH", escrita pelo francês Laurent Binet e que, em 2010, lhe valeu o prémio Goncourt para primeiro romance. Relata a operação Antropóide, cujo atentado levaria à morte, por septicemia, de Reinhard Heydrich, um dos mais importantes e impiedosos líderes nazis. No elenco estão os actores Jason Clarke, Rosamund Pike, Jack O'Connell, Jack Reynor e Mia Wasikowska. PÚBLICO

 

Ver críticas, aqui https://cinecartaz.publico.pt/Filme/378467_o-homem-do-coracao-de-ferro

sábado, 10 de outubro de 2020

O Estado Novo e a história

https://ensina.rtp.pt/artigo/o-estado-novo-e-a-historia/ 

O Estado Novo utilizou a história como instrumento de propaganda e de afirmação de poder. Construiu uma imagem do passado idílica, que contaminou a nossa perceção da história portuguesa até aos dias de hoje.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O Tribunal Plenário, instrumento de justiça política do Estado Novo*



         I
·          Irene Pimentel   -  28.03.10  

Terminada a II Guerra Mundial, António de Oliveira Salazar prometeu eleições «livres como na livre Inglaterra» e assegurou que uma série de decretos iriam «suprimir o regime excepcional sobre a segurança do Estado e garantir de modo efectivo a liberdade dos cidadãos contra a eventualidade de prisões arbitrárias». Usando essa mesma lógica, o governo mudou também o nome de algumas das suas instituições mais conotadas com os regimes fascista e nacional-socialista, entre os quais se contaram o das polícias criminal – PIC - e política – PVDE -, e “civilizou” os Tribunais Militares Especiais, que julgavam os “crimes” políticos, até 1945.
A criação dos tribunais plenários, da PJ e da PIDE. 1945.
Entre outros diplomas promulgados nesse ano que se referiam ao processo de Justiça, contou-se o DL nº 35 044 de 20 de Outubro de 1945 extinguiu o Tribunal Militar Especial (artigo 41.º) e transferiu os processos dele pendentes para um Plenário do Tribunal Criminal (artigo 13.º), de composição civil. O diploma instituiu, nas comarcas de Lisboa e Porto, um tribunal criminal, um tribunal correccional e um tribunal de polícia, fixando uma forma especial de funcionamento do tribunal criminal enquanto tribunal plenário (TP).
O TP tinha competência para julgar todos os crimes contra a segurança exterior e interior do Estado e os de responsabilidade ministerial, os crimes de imprensa, bem como os crimes de açambarcamento, especulação e contra a economia nacional. Ocupava-se ainda dos processos de querela quando, «em virtude da sua importância» a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, sob proposta da Procuradoria-Geral da República, mandasse avocar o seu julgamento ao tribunal plenário. Pelos TP, eram também julgados os crimes de imprensa cometidos nas comarcas de Lisboa e do Porto, enquanto no resto do país eram julgados pelos tribunais comuns.
Das decisões do TP cabia recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, mas este só conhecia «questões de Direito, pelo que o recurso perdia, por essa razão, parte do seu alcance». Diga-se porém que, ao longo dos anos, os presos políticos e seus advogados foram desaconselhados a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, composto por cinco juízes também da escolha do Ministro da Justiça, pois que a maior parte das vezes as suas penas foram, por ele, agravadas. Das decisões do juiz instrutor dos juízos criminais sobre liberdade provisória e sobre o despacho de pronúncia ou equivalente cabia reclamação para… o próprio tribunal plenário.
É certo que, em 10 de Outubro de 1945, tinha sido institucionalizado, pelo DL n.º 35 043, o pedido excepcional de habeas corpus, contra o abuso do poder, que a Constituição já previa em 1933, mas a polícia política desrespeitava frequentemente a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Também datado de 20 de Outubro de 1945, o DL n.º 35 042, que criou a PJ em substituição da PIC, atribuiu a este organismo policial, a investigação dos crimes, a instrução preparatória dos respectivos processos e a organização da prevenção da criminalidade.
As funções que a lei atribuía ao juiz durante a instrução preparatória, relativamente à libertação ou manutenção da prisão dos arguidos e à aplicação provisória de medidas de segurança, passaram a ser desempenhadas pelo director e pelos subdirectores da PJ. Esse diploma colocava a PJ na dependência do ministério da Justiça, acrescentando, com uma referência a uma próxima mudança na polícia política, que a futura a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) ficava, por seu lado, sob tutela do ministério do Interior. Esclarecia que incumbia a esta, «quanto ao objecto da sua competência os mesmos poderes e funções» atribuídos à PJ.
Dois dias depois, o DL nº 35 046, de 22 de Outubro, extinguiu a PVDE, criando em seu lugar a PIDE. Subordinada ao governo, por via do ministério do Interior, esta centralizava todos os organismos com funções de prevenção e repressão política dos crimes contra a segurança interna e externa do Estado. A PIDE conservou, da antecessora, Poliícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a instrução preparatória dos processos respeitantes a esses, nas comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra. Ficaria ainda, como se verá, com a capacidade de determinar, com quase total independência, o regime de prisão preventiva e para propor a aplicação de medidas de defesa previstas no art.º 175 do Código Penal e vigiar indivíduos a elas sujeitos, mesmo se estes estivessem entregues à supervisão do ministro da Justiça.
A este ministério, foram entregues, até ao fim do ano de 1945, através do mesmo diploma n.º 35.046, de 22 de Outubro, transferidos, do ministério do Interior, a colónia penal do Tarrafal/Cabo Verde e o forte de Peniche, presídios que passaram a ser dirigidos por intermédio do Conselho Superior dos Serviços Criminais. As cadeias do Aljube e do forte de Caxias, em Lisboa, bem como as prisões das delegações de Coimbra e do Porto continuaram a ser geridas pela PIDE, como já acontecia desde 1934, no tempo da PVDE.
A «policialização» do processo penal
Num livro, intitulado Notas sobre a Instrução Criminal, editado em 1968 - que foi, aliás, apreendido pela polícia política -, o advogado Francisco Salgado Zenha enumerou «os passos sucessivos do regime de excepção» erguidos pelo Estado Novo, em oposição ao Código de Processo Penal de 1929, «em prejuízo manifesto do direito de defesa do arguido». Numa primeira fase – observou -, tinha sido atribuída, à Polícia de Instrução Criminal (PIC, a antecessora da Polícia Judiciária), «competência, paralela à dos juízes, para proceder à investigação pré-acusatória de certos delitos e para julgar certas infracções e categorias».
Depois, numa segunda fase, a partir de 1945, os poderes da Polícia Judiciária (PJ) haviam sido ampliados, «por via da restrição dos poderes instrutórios do juiz e da possibilidade de privação da liberdade atingir 180 dias sem qualquer controle judicial, bem como a atribuição de competências instrutórias ao Ministério Público, “uma agência do Governo, a ele sujeito”. Contra este estado de coisas, qualificado de «policialização ou administrativação da instrução», Zenha defendia a «judicialização de todo o processo penal».
Noutro livro, Justiça e Polícia, de 1969, voltariam a mostrar como, a partir de 1945, tinha sido expulso «o juiz do foro sagrado da instrução criminal e se instalou lá o agente do Ministério Público ou o funcionário policial!» Ora, este era «juiz em causa própria», por constituir uma das partes no processo penal, a parte acusatória, além de ser «um órgão activo da Administração subordinado ao Governo». Por outro lado, enquanto o Ministério Público, para levar a cabo as suas investigações, não podia privar da liberdade física os suspeitos por um período superior a 50 dias e carecia para esse efeito do referendum do Tribunal, tanto a PJ como a PIDE tinham o poder de prenderem, «durante 180 dias para averiguações», com «dispensa de qualquer referendum ou controlo judicial».
Ao fim de 180 dias, «o arguido podia almejar ver um juiz», mas então a «“instrução preparatória” já se encontrava feita pela polícia e valia como se tivesse sido feita por um juiz». «E tanto era assim» - observavam os autores - quanto, «nos processos organizados pela PIDE, remetidos a tribunal em Lisboa, os juízes limitavam-se a lavrar os seus despachos acusatórios com base nos papéis remetidos pela PIDE». Os dois advogados concluíam, assim, de novo pela urgência em restabelecer imediatamente a «judicialidade de todo o processo criminal, quer durante a instrução escrita, quer durante o julgamento oral, reatando-se assim a tradição jurídica nacional quebrada brutalmente em 1945 pela importação de figurinos estrangeiros já então condenados pela história e pela moral».
Outra questão importante que levantaram e será levantada ao longo dos anos pelos defensores dos presos políticos era o facto de, segundo eles, se assegurar ainda, aos arguidos, o direito de serem assistidos por advogado durante os interrogatórios e encarcerar os detidos preventivamente para fins de instrução, em «estabelecimentos prisionais autónomos e independentes de quaisquer polícias». Noutro livro, publicado em 1970, intitulado O Direito de Defesa e a Defesa do Direito, onde afirmaram que a Justiça teria de ser feita pela própria Justiça e não pela polícia, Francisco Salgado Zenha e Abranches Ferrão convidaram o ministério da Justiça a «pugnar por que a administração da Justiça se exerça dentro da estrita legalidade», ou seja, «garantir nomeadamente, neste caso, a regra da instrução contraditória e a livre organização da defesa dos arguidos»
Mudanças aparentes ou reais, na legislação de 1945?
A maioria dos historiadores observaram que as mudanças do sistema de Justiça política de 1945 apenas foram de fachada, contextualizando-as no período do pós-guerra, quando o Estado Novo procurava a todo o transe distinguir-se dos derrotados regimes nazi-fascistas. Para o advogado José António Barreiros, o regime salazarista alcançou, através da criação dos TP, «uma integral co-responsabilização da magistratura judicial comum na aplicação da justiça política». Este autor observou ainda que as deliberações dos TP apenas eram recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que só reconhecia matéria de Direito.
O advogado José Augusto Rocha considerou mesmo que a chave do funcionamento do tribunal plenário esteve no facto de não se poder recorrer da matéria de facto para o STJ. Enquanto este apenas se preocupava com a aplicação e interpretação da lei, era o TP a instância de fixação da matéria de facto, sendo que esta era aceite ipsis verbis tal como vinha instruída pela PIDE. Além disso, o juiz e o delegado do Ministério Pública eram nomeados pelo governo, concluindo esse advogado que o TP não servia para julgar, mas para condenar.
Prisão preventiva e medidas de segurança. 1947 a 1949.

Com os diplomas de 1945, o prazo máximo de duração da prisão sem culpa formada e da instrução preparatória era de três meses. Podia ser prorrogado por dois períodos sucessivos de quarenta e cindo dias, cada, mediante autorização do ministro da Justiça ou do ministro do Interior, conforme se tratasse de causa afecta à PJ ou à PIDE. A proposta à tutela caberia ao director da respectiva polícia, que devia ter em consideração «a gravidade ou multiplicidade dos factos criminosos e a dificuldade do seu completo esclarecimento, havendo fortes indícios da culpabilidade dos arguidos», bem como «a complexidade e carácter excepcionalmente perigoso da organização criminosa» sobre a qual recaía a investigação.
Quanto às medidas de segurança posteriores ao julgamento, o DL n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945 estipulava que, «para evitar grave perigo de repetição de factos criminosos», poderia haver o internamento em manicómio ou anexo psiquiátrico, a interdição do exercício de profissões ou de certos direitos, a liberdade vigiada, a proibição de residência no local da falta e a fixação de residência. Essas medidas só podiam, porém, ser aplicadas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público. Por seu turno, o D. n.º 34 674, de 18 de Junho de 1945, estabelecera a divisão dos estabelecimentos prisionais, separando os destinados ao cumprimento de penas, dos reservados à execução de medidas de segurança.
Lembre-se que a Constituição portuguesa de 1933 declarara que, para prevenir os delitos, seriam instituídas penas e medidas de segurança «com o objectivo de defender a sociedade e a readaptação social do delinquente». O Decreto-Lei n.º 23 203, de 6 de Novembro de 1933 consagrara posteriormente duas formas de tratamento dos condenados por «crimes políticos», cujo conceito legal tinha sido aliás fixado pelo Código de Processo Civil (CPP) de 1929, reservando aos “mais perigosos” - terrorismo e imprensa clandestina -, uma medida de segurança. Ou seja, o tribunal ordenava a colocação do condenado depois do cumprimento da pena à disposição do governo, no local e pelo período que este entendesse. Em 1936, a Reforma Prisional diminuíra depois a disparidade prevista no Direito português, entre os acusados de terrorismo e imprensa clandestina e os restantes “criminosos políticos”. Ficava claro que os mais perigosos politicamente eram aqueles, para os quais se poderia tornar necessário um internamento prorrogável, por ser insuficiente a aplicação de uma pena ou a expulsão.
Dois anos depois dos diplomas de 1945, num contexto de tentativa de golpe de Estado e de agitação estudantil e laboral, o DL n.º 36 387, de 1 de Julho de 1947, atribuiu à PIDE um novo poder. Efectivamente alargou o âmbito de aplicação das «medidas de segurança, previstas na Constituição para a defesa da sociedade e reabilitação dos delinquentes» a todos os «demais condenados por crimes contra a segurança exterior ou interior do Estado». Através desse diploma de 1947, o governo também passou a poder administrativamente fixar residência ou proibir a residência no território nacional – ou seja, sem processo judicial nem julgamento – a «indivíduos cuja actividade» fizesse «recear a perpetração de crimes contra a segurança do Estado».
A reforma da organização judiciária política iniciada em 1945 e continuada em 1947 prolongou-se com a publicação do DL n.º 37.047, de 7 de Setembro de 1948, segundo o qual os juízes presidentes dos círculos judiciais e os juízes dos juízos criminais de Lisboa e do Porto eram nomeados em comissão de serviço de três anos de entre os juízes de primeira classe designados pelo Conselho Superior Judiciário. Quer os juízes presidentes dos círculos, quer os juízes desembargadores presidentes dos plenários criminais tinham amplos poderes disciplinares e de inspecção sobre os juízes das comarcas, o que tinha um efeito conjugado fortemente prejudicial para a independência do tribunal.
Em Julho de 1948, realizou-se no 3.º Juízo Criminal de Lisboa, um importante julgamento, que ficou conhecido como o do «processo dos 108», tal era o número dos acusados de pertencer ao PCP e MUD, em vários pontos do país. Foi no contexto desse «julgamento dos 108», que surgiu o DL n.º 37 447, de 13 de Junho de 1949, que criou o Conselho de Segurança Pública (CSP), com o qual as «medidas de segurança» foram transformadas em medidas de prisão, a serem cumpridas «em estabelecimento adequado», de um a três anos, após o cumprimento da pena sentenciada pelo tribunal. Aos condenados por «actividades subversivas» de associações de carácter comunista, ou crimes contra a segurança interior e exterior do Estado, ou da prática de terrorismo como meio de actuação, a PIDE passou assim a ter a faculdade, através do seu director, de propor a aplicação e prorrogação dessas medidas, cumpridas nas prisões privativas dessa polícia.
Os diplomas de 1949, 1954 e 1956
Com o diploma de 1949, o Estado Novo realizou a «desjudiciarização» completa do controlo cautelar das actividades subversivas, nomeadamente através da criação da figura de «vigilância especial», aplicável pelo Conselho de Segurança Pública (CSP). Ou seja, um órgão administrativo de coordenação das actividades de segurança pública tinha competência para impor a indivíduos condenados por crimes contra a segurança Estado um regime de limitações da liberdade de deslocação. Substituía-se assim, ao tribunal, na aplicação de uma medida substancialmente idêntica à medida de liberdade vigiada, sendo o desrespeito destas limitações equiparado ao crime de desobediência, devendo o arguido aguardar o julgamento em prisão preventiva.
A legislação de 1947 e 1949 correspondeu a uma fase de contra-ataque do regime sobre as oposições, depois do susto do pós-II Guerra Mundial e visou legalizar o que, na realidade, nunca deixara de ser uma prática constante – e ilegal, dado que nos anos trinta, a preocupação com a legalidade era nenhuma - da PVDE, relativamente à detenção por tempo indeterminado e sem pena, ou para além desta. A partir de então, a política criminal do Estado Novo passou a assentar em dois pilares: na prisão preventiva e nas medidas de segurança. Além de poder propor a aplicação e prorrogação de uma medida segurança de internamento, após o cumprimento da pena a que os tribunais condenavam os detidos políticos, o director da PIDE tinha ainda competência para aplicar «provisoriamente» uma medida de segurança, durante o período de instrução do processo, antes de o preso ser julgado.
A resistência do ministro da Justiça aos diplomas de 1954 e 1956
Em 1953, o ministro da Justiça Cavaleiro Ferreira fez publicar o DL n.º 39.351, de 7 de Setembro, nos termos do qual a PJ foi convertida em «organismo auxiliar do Ministério Público, dependente do Ministro da Justiça e sujeito à orientação e fiscalização directas da Procuradoria-Geral da República». No entanto, essa subordinação hierárquica da PJ ao Ministério Público, que reforçou a posição processual deste no controlo da instrução preparatória dos processos instruídos por aquela polícia, regulamentada por esse diploma, não se estendeu à PIDE.
Efectivamente o DL n.º 39 749, de 9 de Agosto de 1954, atribuiu atribuído funções de juiz, ao director, subdirector, inspector responsável e eventualmente a inspectores-adjuntos, sub-inspectores e chefes de brigada da PIDE, na instrução preparatória dos processos, relativamente à manutenção da prisão dos arguidos e à aplicação provisória das medidas de segurança. Através do DL n.º 39 749, a PIDE ficou ainda com a possibilidade de propor a aplicação de medidas de segurança privativas da liberdade – posterior ao cumprimento da pena -, e vigiar os indivíduos a elas sujeitos. Cabia ao ministro da Justiça, por intermédio do Conselho Superior dos Serviços Criminais, a superintendência da execução das penas e dessas medidas de segurança.
O ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira opôs-se a essa diferenciação da prerrogativa da PIDE, relativamente à PJ, consagrada no DL n.º 39 749 e defendida, claro está, pelo ministério do Interior. Criticou não só a ausência de relação funcional da polícia política com o Ministério Público, propondo que ficasse expressa, no diploma, a subordinação hierárquica daquela a esta magistratura. Além disso, Cavaleiro Ferreira afirmou que a competência para determinar a prisão preventiva fora de flagrante delito era concedida com tal magnanimidade às autoridades administrativas que mais «fácil» seria «fazer a enumeração dos que não são autoridade».
Quanto à nova competência dos sub-inspectores e dos chefes de brigada da PIDE, Cavaleiro Ferreira entendeu que era «mais do que duvidosa a sua inclusão nesse conceito de “autoridade”». Além disso, o ministro da Justiça discordou da ampliação dos poderes «detentivos» da PIDE, de 180 para 360 dias. Sobre este assunto, Francisco Salgado Zenha e Duarte Vidal, observaram, porém, que a diferença entre um arbítrio por 180 dias, ou por 360 dias era um pormenor meramente quantitativo. É que, quando a PIDE precisava de prender alguém por mais de 180 dias nem necessitava «tão pouco de recorrer ao “bónus” de 1954»: soltava ao fim de 180 dias e acto contínuo tornava a prender por mais 180 dias.
Seja como for, Cavaleiro Ferreira recusou-se a assinar o DL n.º 39 749 e pediu a sua exoneração, em 7 de Agosto de 1954. O diploma contestado, que levou a chancela do próprio Salazar, enquanto assumiu a pasta da Justiça interinamente de 7 a 14 de Agosto, antes de ser substituído por Antunes Varela. Em 5 de Junho, dois meses antes de sair do governo, ainda fez publicar, pelo DL n.º 39 688, uma reforma do Código Penal (CP), que possibilitou ainda o desconto de metade da prisão preventiva já cumprida, nas condenações a penas de prisão maior.
Em 1956, o DL n.º 40 550, de 12 de Março piorou a situação dos presos políticos, ao ampliar «a todos os processos de segurança a faculdade de aplicação provisória da medida de segurança de internamento» e agravar «o regime da medida de segurança aplicável aos suspeitos da prática de actividades subversivas. O DL n.º 40 550 foi criticado por muitos juristas. Por exemplo, Adelino da Palma Carlos denunciou o «agravamento da desjurisdicionalização» das medidas de segurança e a possibilidade da sua eternização, bem como a sua aplicação mesmo quando não fosse provada a culpa.
Numerosos advogados de Defesa de presos políticos defenderam, ao longo dos anos, a inconstitucionalidade dessas medidas, embora a maioria dos juízes dos TP e do próprio STJ as tivessem considerado constitucionais, com o argumento de que se justificavam como meio de luta contra o PCP, «fora de dúvida, “uma associação secreta”». Da mesma forma, diversos estudiosos consideraram que as medidas de segurança, ordenadas por períodos indeterminados de seis meses a três anos, foram transformadas em verdadeiras penas de prisão perpétua, mesmo aos absolvidos dos crimes que justificariam a sua aplicação. Por outro lado, a medida de segurança aplicada em Portugal assemelhava-se ao raciocínio por «analogia» em matéria de penalidade, tal como o permitia a lei nazi de 1935.
O funcionamento dos TP, até aos anos 60
Para Macaísta Malheiros, advogado de Defesa de inúmeros presos políticos, os tribunais plenários eram «apenas um simulacro, caracterizando-se por assentarem unicamente nas provas apresentadas pela PIDE, obtidas por coacção e tortura, limitando-se no fundo ao depoimento de dois agentes da PIDE que aí jurava que os réus não tinham sido torturados». Por seu turno, o advogado Mário Brochado Coelho também disse que o regime de Salazar e de Caetano se serviu «de muitos magistrados que, voluntariamente ou por receio de represálias profissionais, acabaram por se transformar num pilar essencial do sistema de repressão». Lembre-se, além disso, que, nas cadeias da PIDE/DGS, os advogados de defesa só podiam falar com os seus clientes na presença de um agente dessa polícia ou de um guarda prisional. Por outro lado, no tribunal plenário, muitos deles foram alvo de processos e alguns mesmo de agressão e prisão, por terem pretensamente desrespeitado o tribunal.
Acusado pela PIDE, em carta ao ministério do Interior, de ter fornecido as informações constantes numa brochura sobre a presa política Piedade Gomes dos Santos, divulgada em França e noutros países de exílio de portugueses, o seu advogado de defesa, Arnaldo Mesquita, foi detido por aquela polícia. Por seu lado, o advogado Manuel João da Palma Carlos, foi preso em pleno tribunal, em 23 de Abril de 1957, e condenado por desrespeito ao tribunal a sete meses de prisão, um ano de privação de direitos políticos e um ano de suspensão de exercício de advocacia. Isto, por ter respondido ao juiz: «julgue como quiser, Sua Ex.ª, com ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar na acta tudo quando na audiência se passar».
Muitos presos políticos também foram novamente detidos em plena sala do