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Irene Pimentel - 28.03.10
Terminada
a II Guerra Mundial, António de Oliveira Salazar prometeu eleições «livres como
na livre Inglaterra» e assegurou que uma série de decretos iriam «suprimir o
regime excepcional sobre a segurança do Estado e garantir de modo efectivo a
liberdade dos cidadãos contra a eventualidade de prisões arbitrárias». Usando
essa mesma lógica, o governo mudou também o nome de algumas das suas
instituições mais conotadas com os regimes fascista e nacional-socialista,
entre os quais se contaram o das polícias criminal – PIC - e política – PVDE -,
e “civilizou” os Tribunais Militares Especiais, que julgavam os “crimes”
políticos, até 1945.
A
criação dos tribunais plenários, da PJ e da PIDE. 1945.
Entre
outros diplomas promulgados nesse ano que se referiam ao processo de Justiça,
contou-se o DL nº 35 044 de 20 de Outubro de 1945 extinguiu o Tribunal Militar
Especial (artigo 41.º) e transferiu os processos dele pendentes para um
Plenário do Tribunal Criminal (artigo 13.º), de composição civil. O diploma
instituiu, nas comarcas de Lisboa e Porto, um tribunal criminal, um tribunal
correccional e um tribunal de polícia, fixando uma forma especial de
funcionamento do tribunal criminal enquanto tribunal plenário (TP).
O TP tinha competência para julgar todos os crimes
contra a segurança exterior e interior do Estado e os de responsabilidade
ministerial, os crimes de imprensa, bem como os crimes de açambarcamento,
especulação e contra a economia nacional. Ocupava-se ainda dos processos de
querela quando, «em virtude da sua importância» a secção criminal do Supremo
Tribunal de Justiça, sob proposta da Procuradoria-Geral da República, mandasse
avocar o seu julgamento ao tribunal plenário. Pelos TP, eram também julgados os
crimes de imprensa cometidos nas comarcas de Lisboa e do Porto, enquanto no
resto do país eram julgados pelos tribunais comuns.
Das
decisões do TP cabia recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de
Justiça, mas este só conhecia «questões de Direito, pelo que o recurso perdia,
por essa razão, parte do seu alcance». Diga-se porém que, ao longo dos anos, os
presos políticos e seus advogados foram desaconselhados a recorrer para o
Supremo Tribunal de Justiça, composto por cinco juízes também da escolha do
Ministro da Justiça, pois que a maior parte das vezes as suas penas foram, por
ele, agravadas. Das decisões do juiz instrutor dos juízos criminais sobre
liberdade provisória e sobre o despacho de pronúncia ou equivalente cabia
reclamação para… o próprio tribunal plenário.
É
certo que, em 10 de Outubro de 1945, tinha sido institucionalizado, pelo DL n.º
35 043, o pedido excepcional de habeas corpus, contra o abuso do
poder, que a Constituição já previa em 1933, mas a polícia política
desrespeitava frequentemente a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
Também datado de 20 de Outubro de 1945, o DL n.º 35 042, que criou a PJ em
substituição da PIC, atribuiu a este organismo policial, a investigação dos
crimes, a instrução preparatória dos respectivos processos e a organização da
prevenção da criminalidade.
As
funções que a lei atribuía ao juiz durante a instrução preparatória,
relativamente à libertação ou manutenção da prisão dos arguidos e à aplicação
provisória de medidas de segurança, passaram a ser desempenhadas pelo director
e pelos subdirectores da PJ. Esse diploma colocava a PJ na dependência do
ministério da Justiça, acrescentando, com uma referência a uma próxima mudança
na polícia política, que a futura a Polícia Internacional e de Defesa do Estado
(PIDE) ficava, por seu lado, sob tutela do ministério do Interior. Esclarecia
que incumbia a esta, «quanto ao objecto da sua competência os mesmos poderes e
funções» atribuídos à PJ.
Dois
dias depois, o DL nº 35 046, de 22 de Outubro, extinguiu a PVDE, criando em seu
lugar a PIDE. Subordinada ao governo, por via do ministério do Interior, esta
centralizava todos os organismos com funções de prevenção e repressão política
dos crimes contra a segurança interna e externa do Estado. A PIDE conservou, da
antecessora, Poliícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a instrução
preparatória dos processos respeitantes a esses, nas comarcas de Lisboa, Porto
e Coimbra. Ficaria ainda, como se verá, com a capacidade de determinar, com
quase total independência, o regime de prisão preventiva e para propor a aplicação
de medidas de defesa previstas no art.º 175 do Código Penal e vigiar indivíduos
a elas sujeitos, mesmo se estes estivessem entregues à supervisão do ministro
da Justiça.
A
este ministério, foram entregues, até ao fim do ano de 1945, através do mesmo
diploma n.º 35.046, de 22 de Outubro, transferidos, do ministério do Interior,
a colónia penal do Tarrafal/Cabo Verde e o forte de Peniche, presídios que
passaram a ser dirigidos por intermédio do Conselho Superior dos Serviços
Criminais. As cadeias do Aljube e do forte de Caxias, em Lisboa, bem como as
prisões das delegações de Coimbra e do Porto continuaram a ser geridas pela
PIDE, como já acontecia desde 1934, no tempo da PVDE.
A
«policialização» do processo penal
Num
livro, intitulado Notas sobre a Instrução Criminal, editado em 1968
- que foi, aliás, apreendido pela polícia política -, o advogado Francisco
Salgado Zenha enumerou «os passos sucessivos do regime de excepção» erguidos
pelo Estado Novo, em oposição ao Código de Processo Penal de 1929, «em prejuízo
manifesto do direito de defesa do arguido». Numa primeira fase – observou -,
tinha sido atribuída, à Polícia de Instrução Criminal (PIC, a antecessora da
Polícia Judiciária), «competência, paralela à dos juízes, para proceder à
investigação pré-acusatória de certos delitos e para julgar certas infracções e
categorias».
Depois,
numa segunda fase, a partir de 1945, os poderes da Polícia Judiciária (PJ)
haviam sido ampliados, «por via da restrição dos poderes instrutórios do juiz e
da possibilidade de privação da liberdade atingir 180 dias sem qualquer
controle judicial, bem como a atribuição de competências instrutórias ao
Ministério Público, “uma agência do Governo, a ele sujeito”. Contra este estado
de coisas, qualificado de «policialização ou administrativação da instrução»,
Zenha defendia a «judicialização de todo o processo penal».
Noutro
livro, Justiça e Polícia, de 1969, voltariam a mostrar como, a
partir de 1945, tinha sido expulso «o juiz do foro sagrado da instrução
criminal e se instalou lá o agente do Ministério Público ou o funcionário
policial!» Ora, este era «juiz em causa própria», por constituir uma das partes
no processo penal, a parte acusatória, além de ser «um órgão activo da
Administração subordinado ao Governo». Por outro lado, enquanto o Ministério
Público, para levar a cabo as suas investigações, não podia privar da liberdade
física os suspeitos por um período superior a 50 dias e carecia para esse
efeito do referendum do Tribunal, tanto a PJ como a PIDE
tinham o poder de prenderem, «durante 180 dias para averiguações», com
«dispensa de qualquer referendum ou controlo judicial».
Ao
fim de 180 dias, «o arguido podia almejar ver um juiz», mas então a «“instrução
preparatória” já se encontrava feita pela polícia e valia como
se tivesse sido feita por um juiz». «E tanto era assim» - observavam os autores
- quanto, «nos processos organizados pela PIDE, remetidos a tribunal em Lisboa,
os juízes limitavam-se a lavrar os seus despachos acusatórios com base nos
papéis remetidos pela PIDE». Os dois advogados concluíam, assim, de novo pela
urgência em restabelecer imediatamente a «judicialidade de todo o
processo criminal, quer durante a instrução escrita, quer durante o julgamento
oral, reatando-se assim a tradição jurídica nacional quebrada brutalmente em
1945 pela importação de figurinos estrangeiros já então condenados pela
história e pela moral».
Outra
questão importante que levantaram e será levantada ao longo dos anos pelos
defensores dos presos políticos era o facto de, segundo eles, se assegurar
ainda, aos arguidos, o direito de serem assistidos por advogado durante os
interrogatórios e encarcerar os detidos preventivamente para fins de instrução,
em «estabelecimentos prisionais autónomos e independentes de quaisquer polícias».
Noutro livro, publicado em 1970, intitulado O Direito de Defesa e a
Defesa do Direito, onde afirmaram que a Justiça teria de ser feita pela
própria Justiça e não pela polícia, Francisco Salgado Zenha e Abranches Ferrão
convidaram o ministério da Justiça a «pugnar por que a administração da Justiça
se exerça dentro da estrita legalidade», ou seja, «garantir nomeadamente, neste
caso, a regra da instrução contraditória e a livre organização da defesa dos
arguidos»
Mudanças
aparentes ou reais, na legislação de 1945?
A
maioria dos historiadores observaram que as mudanças do sistema de Justiça
política de 1945 apenas foram de fachada, contextualizando-as no período do
pós-guerra, quando o Estado Novo procurava a todo o transe distinguir-se dos
derrotados regimes nazi-fascistas. Para o advogado José António Barreiros, o
regime salazarista alcançou, através da criação dos TP, «uma integral
co-responsabilização da magistratura judicial comum na aplicação da justiça
política». Este autor observou ainda que as deliberações dos TP apenas eram
recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que só reconhecia matéria
de Direito.
O
advogado José Augusto Rocha considerou mesmo que a chave do funcionamento do
tribunal plenário esteve no facto de não se poder recorrer da matéria de facto
para o STJ. Enquanto este apenas se preocupava com a aplicação e interpretação
da lei, era o TP a instância de fixação da matéria de facto, sendo que esta era
aceite ipsis verbis tal como vinha instruída pela PIDE. Além
disso, o juiz e o delegado do Ministério Pública eram nomeados pelo governo,
concluindo esse advogado que o TP não servia para julgar, mas para condenar.
Prisão
preventiva e medidas de segurança. 1947 a 1949.
Com
os diplomas de 1945, o prazo máximo de duração da prisão sem culpa formada e da
instrução preparatória era de três meses. Podia ser prorrogado por dois
períodos sucessivos de quarenta e cindo dias, cada, mediante autorização do
ministro da Justiça ou do ministro do Interior, conforme se tratasse de causa
afecta à PJ ou à PIDE. A proposta à tutela caberia ao director da respectiva
polícia, que devia ter em consideração «a gravidade ou multiplicidade dos
factos criminosos e a dificuldade do seu completo esclarecimento, havendo
fortes indícios da culpabilidade dos arguidos», bem como «a complexidade e
carácter excepcionalmente perigoso da organização criminosa» sobre a qual
recaía a investigação.
Quanto
às medidas de segurança posteriores ao julgamento, o DL n.º 35 007, de 13 de
Outubro de 1945 estipulava que, «para evitar grave perigo de repetição de
factos criminosos», poderia haver o internamento em manicómio ou anexo
psiquiátrico, a interdição do exercício de profissões ou de certos direitos, a
liberdade vigiada, a proibição de residência no local da falta e a fixação de
residência. Essas medidas só podiam, porém, ser aplicadas pelo juiz, a
requerimento do Ministério Público. Por seu turno, o D. n.º 34 674, de 18 de
Junho de 1945, estabelecera a divisão dos estabelecimentos prisionais,
separando os destinados ao cumprimento de penas, dos reservados à execução de
medidas de segurança.
Lembre-se
que a Constituição portuguesa de 1933 declarara que, para prevenir os delitos,
seriam instituídas penas e medidas de segurança «com o objectivo de defender a
sociedade e a readaptação social do delinquente». O Decreto-Lei n.º 23 203, de
6 de Novembro de 1933 consagrara posteriormente duas formas de tratamento dos
condenados por «crimes políticos», cujo conceito legal tinha sido aliás fixado
pelo Código de Processo Civil (CPP) de 1929, reservando aos “mais perigosos” -
terrorismo e imprensa clandestina -, uma medida de segurança. Ou seja, o
tribunal ordenava a colocação do condenado depois do cumprimento da pena à disposição
do governo, no local e pelo período que este entendesse. Em 1936, a Reforma
Prisional diminuíra depois a disparidade prevista no Direito português, entre
os acusados de terrorismo e imprensa clandestina e os restantes “criminosos
políticos”. Ficava claro que os mais perigosos politicamente eram aqueles, para
os quais se poderia tornar necessário um internamento prorrogável, por ser
insuficiente a aplicação de uma pena ou a expulsão.
Dois
anos depois dos diplomas de 1945, num contexto de tentativa de golpe de Estado
e de agitação estudantil e laboral, o DL n.º 36 387, de 1 de Julho de 1947,
atribuiu à PIDE um novo poder. Efectivamente alargou o âmbito de aplicação das
«medidas de segurança, previstas na Constituição para a defesa da sociedade e
reabilitação dos delinquentes» a todos os «demais condenados por crimes contra
a segurança exterior ou interior do Estado». Através desse diploma de 1947, o
governo também passou a poder administrativamente fixar residência ou proibir a
residência no território nacional – ou seja, sem processo judicial nem
julgamento – a «indivíduos cuja actividade» fizesse «recear a perpetração de
crimes contra a segurança do Estado».
A
reforma da organização judiciária política iniciada em 1945 e continuada em
1947 prolongou-se com a publicação do DL n.º 37.047, de 7 de Setembro de 1948,
segundo o qual os juízes presidentes dos círculos judiciais e os juízes dos
juízos criminais de Lisboa e do Porto eram nomeados em comissão de serviço de
três anos de entre os juízes de primeira classe designados pelo Conselho
Superior Judiciário. Quer os juízes presidentes dos círculos, quer os juízes
desembargadores presidentes dos plenários criminais tinham amplos poderes
disciplinares e de inspecção sobre os juízes das comarcas, o que tinha um efeito
conjugado fortemente prejudicial para a independência do tribunal.
Em
Julho de 1948, realizou-se no 3.º Juízo Criminal de Lisboa, um importante
julgamento, que ficou conhecido como o do «processo dos 108», tal era o número
dos acusados de pertencer ao PCP e MUD, em vários pontos do país. Foi no
contexto desse «julgamento dos 108», que surgiu o DL n.º 37 447, de 13 de Junho
de 1949, que criou o Conselho de Segurança Pública (CSP), com o qual as
«medidas de segurança» foram transformadas em medidas de prisão, a serem
cumpridas «em estabelecimento adequado», de um a três anos, após o cumprimento
da pena sentenciada pelo tribunal. Aos condenados por «actividades subversivas»
de associações de carácter comunista, ou crimes contra a segurança interior e exterior
do Estado, ou da prática de terrorismo como meio de actuação, a PIDE passou
assim a ter a faculdade, através do seu director, de propor a aplicação e
prorrogação dessas medidas, cumpridas nas prisões privativas dessa polícia.
Os
diplomas de 1949, 1954 e 1956
Com
o diploma de 1949, o Estado Novo realizou a «desjudiciarização» completa do
controlo cautelar das actividades subversivas, nomeadamente através da criação
da figura de «vigilância especial», aplicável pelo Conselho de Segurança
Pública (CSP). Ou seja, um órgão administrativo de coordenação das actividades
de segurança pública tinha competência para impor a indivíduos condenados por
crimes contra a segurança Estado um regime de limitações da liberdade de
deslocação. Substituía-se assim, ao tribunal, na aplicação de uma medida
substancialmente idêntica à medida de liberdade vigiada, sendo o desrespeito
destas limitações equiparado ao crime de desobediência, devendo o arguido
aguardar o julgamento em prisão preventiva.
A
legislação de 1947 e 1949 correspondeu a uma fase de contra-ataque do regime
sobre as oposições, depois do susto do pós-II Guerra Mundial e visou legalizar
o que, na realidade, nunca deixara de ser uma prática constante – e ilegal,
dado que nos anos trinta, a preocupação com a legalidade era nenhuma - da PVDE,
relativamente à detenção por tempo indeterminado e sem pena, ou para além
desta. A partir de então, a política criminal do Estado Novo passou a assentar
em dois pilares: na prisão preventiva e nas medidas de segurança. Além de poder
propor a aplicação e prorrogação de uma medida segurança de internamento, após
o cumprimento da pena a que os tribunais condenavam os detidos políticos, o
director da PIDE tinha ainda competência para aplicar «provisoriamente» uma
medida de segurança, durante o período de instrução do processo, antes de o
preso ser julgado.
A
resistência do ministro da Justiça aos diplomas de 1954 e 1956
Em
1953, o ministro da Justiça Cavaleiro Ferreira fez publicar o DL n.º 39.351, de
7 de Setembro, nos termos do qual a PJ foi convertida em «organismo auxiliar do
Ministério Público, dependente do Ministro da Justiça e sujeito à orientação e
fiscalização directas da Procuradoria-Geral da República». No entanto, essa
subordinação hierárquica da PJ ao Ministério Público, que reforçou a posição
processual deste no controlo da instrução preparatória dos processos instruídos
por aquela polícia, regulamentada por esse diploma, não se estendeu à PIDE.
Efectivamente
o DL n.º 39 749, de 9 de Agosto de 1954, atribuiu atribuído funções de juiz, ao
director, subdirector, inspector responsável e eventualmente a
inspectores-adjuntos, sub-inspectores e chefes de brigada da PIDE, na instrução
preparatória dos processos, relativamente à manutenção da prisão dos arguidos e
à aplicação provisória das medidas de segurança. Através do DL n.º 39 749, a
PIDE ficou ainda com a possibilidade de propor a aplicação de medidas de
segurança privativas da liberdade – posterior ao cumprimento da pena -, e
vigiar os indivíduos a elas sujeitos. Cabia ao ministro da Justiça, por
intermédio do Conselho Superior dos Serviços Criminais, a superintendência da
execução das penas e dessas medidas de segurança.
O
ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira opôs-se a essa diferenciação da
prerrogativa da PIDE, relativamente à PJ, consagrada no DL n.º 39 749 e
defendida, claro está, pelo ministério do Interior. Criticou não só a ausência
de relação funcional da polícia política com o Ministério Público, propondo que
ficasse expressa, no diploma, a subordinação hierárquica daquela a esta
magistratura. Além disso, Cavaleiro Ferreira afirmou que a competência para
determinar a prisão preventiva fora de flagrante delito era concedida com tal
magnanimidade às autoridades administrativas que mais «fácil» seria «fazer a
enumeração dos que não são autoridade».
Quanto
à nova competência dos sub-inspectores e dos chefes de brigada da PIDE,
Cavaleiro Ferreira entendeu que era «mais do que duvidosa a sua inclusão nesse
conceito de “autoridade”». Além disso, o ministro da Justiça discordou da
ampliação dos poderes «detentivos» da PIDE, de 180 para 360 dias. Sobre este
assunto, Francisco Salgado Zenha e Duarte Vidal, observaram, porém, que a
diferença entre um arbítrio por 180 dias, ou por 360 dias era um pormenor
meramente quantitativo. É que, quando a PIDE precisava de prender alguém por
mais de 180 dias nem necessitava «tão pouco de recorrer ao “bónus” de 1954»:
soltava ao fim de 180 dias e acto contínuo tornava a prender por mais 180 dias.
Seja
como for, Cavaleiro Ferreira recusou-se a assinar o DL n.º 39 749 e pediu a sua
exoneração, em 7 de Agosto de 1954. O diploma contestado, que levou a chancela
do próprio Salazar, enquanto assumiu a pasta da Justiça interinamente de 7 a 14
de Agosto, antes de ser substituído por Antunes Varela. Em 5 de Junho, dois
meses antes de sair do governo, ainda fez publicar, pelo DL n.º 39 688, uma
reforma do Código Penal (CP), que possibilitou ainda o desconto de metade da
prisão preventiva já cumprida, nas condenações a penas de prisão maior.
Em
1956, o DL n.º 40 550, de 12 de Março piorou a situação dos presos políticos,
ao ampliar «a todos os processos de segurança a faculdade de aplicação
provisória da medida de segurança de internamento» e agravar «o regime da
medida de segurança aplicável aos suspeitos da prática de actividades
subversivas. O DL n.º 40 550 foi criticado por muitos juristas. Por exemplo,
Adelino da Palma Carlos denunciou o «agravamento da desjurisdicionalização» das
medidas de segurança e a possibilidade da sua eternização, bem como a sua
aplicação mesmo quando não fosse provada a culpa.
Numerosos
advogados de Defesa de presos políticos defenderam, ao longo dos anos, a
inconstitucionalidade dessas medidas, embora a maioria dos juízes dos TP e do
próprio STJ as tivessem considerado constitucionais, com o argumento de que se
justificavam como meio de luta contra o PCP, «fora de dúvida, “uma associação
secreta”». Da mesma forma, diversos estudiosos consideraram que as medidas de
segurança, ordenadas por períodos indeterminados de seis meses a três anos,
foram transformadas em verdadeiras penas de prisão perpétua, mesmo aos
absolvidos dos crimes que justificariam a sua aplicação. Por outro lado, a
medida de segurança aplicada em Portugal assemelhava-se ao raciocínio por
«analogia» em matéria de penalidade, tal como o permitia a lei nazi de 1935.
O
funcionamento dos TP, até aos anos 60
Para
Macaísta Malheiros, advogado de Defesa de inúmeros presos políticos, os
tribunais plenários eram «apenas um simulacro, caracterizando-se por assentarem
unicamente nas provas apresentadas pela PIDE, obtidas por coacção e tortura,
limitando-se no fundo ao depoimento de dois agentes da PIDE que aí jurava que
os réus não tinham sido torturados». Por seu turno, o advogado Mário Brochado
Coelho também disse que o regime de Salazar e de Caetano se serviu «de muitos
magistrados que, voluntariamente ou por receio de represálias profissionais,
acabaram por se transformar num pilar essencial do sistema de repressão».
Lembre-se, além disso, que, nas cadeias da PIDE/DGS, os advogados de defesa só
podiam falar com os seus clientes na presença de um agente dessa polícia ou de
um guarda prisional. Por outro lado, no tribunal plenário, muitos deles foram
alvo de processos e alguns mesmo de agressão e prisão, por terem pretensamente
desrespeitado o tribunal.
Acusado
pela PIDE, em carta ao ministério do Interior, de ter fornecido as informações
constantes numa brochura sobre a presa política Piedade Gomes dos Santos,
divulgada em França e noutros países de exílio de portugueses, o seu advogado
de defesa, Arnaldo Mesquita, foi detido por aquela polícia. Por seu lado, o advogado
Manuel João da Palma Carlos, foi preso em pleno tribunal, em 23 de Abril de
1957, e condenado por desrespeito ao tribunal a sete meses de prisão, um ano de
privação de direitos políticos e um ano de suspensão de exercício de advocacia.
Isto, por ter respondido ao juiz: «julgue como quiser, Sua Ex.ª, com ou sem
prova, mas o que não podem é deixar de consignar na acta tudo quando na
audiência se passar».
Muitos
presos políticos também foram novamente detidos em plena sala do
tribunal plenário e levados para o calabouço da Boa-Hora, após espancamentos, enquanto o julgamento prosseguia. Enviados para o calabouço do Tribunal da Boa-Hora pelos juízes foram-no, entre outros os presos políticos Jaime Serra e Georgette Ferreira, em 1955, Carlos Costa, em 1957, Rogério de Carvalho, António Santo e Sofia Ferreira, em 1959, Fernanda Paiva Tomás e António Gervásio, em 1961, Fernando Blanqui Teixeira, José Bernardino, Octávio Pato e Joaquim Pires Jorge, em 1962, bem como Joaquim Jorge Alves Araújo, no ano seguinte.
tribunal plenário e levados para o calabouço da Boa-Hora, após espancamentos, enquanto o julgamento prosseguia. Enviados para o calabouço do Tribunal da Boa-Hora pelos juízes foram-no, entre outros os presos políticos Jaime Serra e Georgette Ferreira, em 1955, Carlos Costa, em 1957, Rogério de Carvalho, António Santo e Sofia Ferreira, em 1959, Fernanda Paiva Tomás e António Gervásio, em 1961, Fernando Blanqui Teixeira, José Bernardino, Octávio Pato e Joaquim Pires Jorge, em 1962, bem como Joaquim Jorge Alves Araújo, no ano seguinte.
Francisco
Salgado Zenha, advogado deste último, relatou ter informador então o tribunal
de que tinha ido visitar o preso, ao calabouço, onde verificara «com infinita
tristeza», que «o réu tinha sido barbaramente seviciado» e se «encontrava
visivelmente em estado de choque, referiu-lhe que tinha sido espancado a
cavalo-marinho e casse-tête».
Modificações
no “marcelismo”?
Em
Abril de 1962, o DL n.º 44 278, que integrou o novo Estatuto Judiciário,
alargou a competência do TP aos crimes anti-económicos e aos crimes de imprensa
cometidos fora da comarca de Lisboa e Porto. Esse diploma continuou a
possibilitar a intrusão do poder executivo, através do ministro da Justiça, no
campo judicial, infringindo a separação de poderes. Na vigência de Salazar,
nada se modificou no sistema de Justiça política.
Quando
este foi substituído, na presidência do Conselho de Ministros por Marcello
Caetano, em 1968, este quis inicialmente dar mostras de que estaria a
liberalizar o regime. Dessa forma, repetiu o que Salazar havia feito em 1945,
ao mudar o nome da PIDE para Direcção Geral de Segurança (DGS), pelo
decreto-lei n.º 49 401 de 19 de Novembro de 1969. No entanto, tudo continuou
quase na mesma e endureceu mesmo, devido à prossecução da guerra colonial.
Efectivamente, o governo passou a ter o poder de declarar o «estado de sítio,
adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua
extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais que se mostrar
indispensável».
A
DGS foi reorganizada, em 30 de Setembro de 1972, pelo DL n.º 368/72, segundo o
qual essa polícia continuava com os mesmos poderes quanto às infracções que
eram objecto da sua competência, que a lei conferia à PJ. As funções que a lei
atribuía ao juiz durante a instrução preparatória, relativamente ao
interrogatório de arguidos presos, a validação da manutenção de capturas e a
decisão sobre liberdade provisória, eram, segundo o diploma, desempenhadas pelo
director-geral, pelos inspectores superiores, directores de serviço e
inspectores-adjuntos.
Quanto
às funções do Ministério Público, durante a instrução preparatória, ficavam a
cargo dos inspectores, por conseguinte, à revelia do controlo judicial. A
assistência do defensor aos interrogatórios podia ser interdita nos processos
instruídos por essa polícia, quando houvesse inconveniência para a investigação
ou o justificasse a natureza do crime. Nesse caso, o advogado seria substituído
por um defensor ad hoc ou duas testemunhas qualificadas e
obrigadas ao segredo de justiça. Claro está, que a DGS aproveitou
ininterruptamente essa norma, interditando a presença de advogado nesses
interrogatórios e constituindo como «testemunhas qualificadas» os próprios
agentes dessa polícia.
Relativamente
às modificações proporcionadas pelo DL n.º 368/72, de 30 de Setembro, a maioria
dos autores consideraram que, tal como em 1945, elas apenas tiveram «natureza
meramente semântica». Isso foi aliás então salientado pelo deputado da Ala
Liberal da Assembleia Nacional, Francisco Sá Carneiro, ao criticar o facto de a
PJ e a DGS instruírem processos. No caso da PJ, segundo observou, os seus
elementos não eram juízes, pois o «juiz é o membro dum tribunal» e «as polícias
não são tribunais». Mais grave ainda, segundo ele, era o caso da DGS, cujos
inspectores e funcionários superiores da PIDE, ao contrário dos da PJ, nem
tinham formação jurídica nem eram da carreira judicial.
Relativamente
à prisão preventiva até à pronúncia provisória, o seu prazo, nos processos cuja
investigação fosse da competência da PJ ou da DGS, passou a ser mais curto,
diminuindo de seis para três meses, a instrução preparatória, com o arguido
preso. Quanto à liberdade condicional, com a reforma de 1972, deixou de poder
exceder a duração da pena imposta e passou a ser considerada uma última fase da
execução da pena de prisão, perdendo a natureza de «gravame» para os reclusos.
Mantinha-se, porém, a situação de controlo político sobre a fase da execução da
pena.
Mais
tarde, já no exílio, Marcelo Caetano justificou a manutenção desse regime processual
da instrução dirigida pela DGS, com as reservas colocadas pela polícia. A DGS,
segundo ele, teria levantado «objecções a que se aplicasse, certos preceitos,
como o da faculdade de assistência do advogado», fundamentando-se, na prática
em todo o mundo (!), quanto a crimes de traição e contra a segurança do Estado.
Além disso, a DGS afirmara que «os advogados convocados pelos terroristas ou
comunistas detidos» eram, «por via da regra, correligionários dos arguidos,
militantes ou simpatizantes, do partido», de tal modo que, se estes pudessem
assistir aos interrogatórios, «nunca mais» os presos abririam «a boca para
dizer fosse o que fosse». O certo é que Caetano aceitou essa argumentação e a
presença do advogado permaneceu, assim, facultativa, ou seja, na prática,
proibida.
Uma
das poucas mudanças então ocorridas, foi a extinção das medidas de segurança de
internamento para os «delinquentes políticos», mas só na metrópole, através do
DL n.º 450/72, de 14 de Novembro. A prorrogação ilimitada da pena de prisão foi
abolida, tal como o foram as medidas aplicáveis a políticos, desaparecendo,
assim, a «categoria de presos indisciplinados e a possibilidade de aplicação de
numa pena indeterminada a qualquer condenado em pena de prisão». No entanto,
manteve-se a prorrogação da pena, limitada a dois períodos sucessivos de três
anos, aplicável apenas «aos delinquentes habituais ou por tendência e aos
imputáveis perigosos, em razão anomalia mental». Por outro lado, o governo
manteve as «medidas administrativas de segurança aplicáveis ao ultramar».
Francisco
Sá Carneiro defendeu na Assembleia Nacional, em 8 de Dezembro de 1972, a
urgência de estender ao Ultramar, quer a abolição de tais medidas, quer «a
também justa e tardia providência legislativa que mandou contar por inteiro o
tempo de prisão preventiva». O facto de isso não acontecer, originou que, entre
os presos políticos libertados em virtude dessas recentes disposições legais,
não figurasse, segundo Sá Carneiro, «o único advogado português preso por
razões políticas, o Dr. Domingos Arouca», apesar de se encontrar na metrópole
em cumprimento de pena de medida de segurança. Sá Carneiro alertou também para
a indispensabilidade de as medidas de segurança não serem substituídas por
prorrogação da pena, uma medida introduzida na redacção do art.º 67.º do Código
Penal. E o certo é que, como denunciou a Comissão Nacional de Socorro aos
Presos Políticos (CNSPP), quatro presos políticos foram sujeitos a essa
prorrogação da pena, em Novembro de 1972 e 1 de Fevereiro de 1973.
Nos
últimos meses do regime ditatorial, o TP já agia, porém, com algum cuidado,
como se tivesse consciência de que os seus dias estavam contados. Em 22 de
Janeiro de 1974, dando como provadas as acusações de ligação ao MRPP e
condenando dois estudantes a quinze meses de prisão correccional, o TP de
Lisboa suspendeu-lhes as penas por quatro anos. Diga-se que tinha entretanto
havido uma modificação de monta na composição do tribunal, com a nomeação, no
início desse ano, de um novo representante do Ministério Público no TP, que
substituiu o anterior representante do MP, Carlos da Costa Saraiva.
Tratou-se
de António Luís de Oliveira Magalhães, que, na sua primeira intervenção de
fundo em tribunal plenário, afirmou não gostar de ser apelidado de «acusador
público».
Denunciou
em particular a confusão que frequentemente se observava entre a acusação
oriunda da instrução preparatória das polícias e o papel processual do que
deveria ser promotor de Justiça. Entrando depois na matéria jurídica da causa
em apreciação no Plenário, qualificou genericamente como delitos de opinião as
opções políticas imputadas aos dois estudantes e, recordando as atenuantes
invocadas pela defesa, pediu a absolvição dos mesmos.
Quem
se manteve no seu cargo até ao fim, foi o juiz-presidente do TP, Fernando
Morgado Florindo, que presidiu ao julgamento que envolveu diversos elementos da
Acção Revolucionária Armada (ARA), ligada ao PCP. Iniciado, em 8 de Janeiro de
1974, o julgamento teve ainda uma sessão, em 21 de Março desse ano, mas
estava-se à beira de os tribunais plenários serem extintos, o que aconteceu em
25 de Abril. Na manhã desse dia, em que se deveria realizar outra audiência
desse julgamento, o desembargador Morgado Florindo exarou, na sequência de um
telefonema directo que fez à DGS, um despacho com o seguinte texto:
«Tendo
a Direcção-Geral de Segurança comunicado telefonicamente a impossibilidade de
assegurar a condução dos réus a este tribunal, devido ao Movimento das Forças
Armadas, adio “sine-die” o julgamento».
* Intervenção proferida no Colóquio Internacional
“Administração e Justiças na Res Publica”, Universidade do Minho,
Braga, 15-16 Março 2010, organização CITCEM (Centro de Investigação
Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória), Grupo Paisagens, Fronteiras e
Poderes. Câmara Municipal de Braga, com o apoio da Comissão Nacional para as
Comemorações do Centenário da República, do Fundo de Apoio à Comunidade
Científica da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Departamento de
História da Universidade do Minho.
Foto: Tribunal da Boa
Hora, Armando Serôdio, 1968, Arquivo Municipal de Lisboa, AFML – A64149
Disponível no blogue https://jugular.blogs.sapo.pt/1728394.html
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