A estranha gente dos arrozais
Um excelente artigo publicado no blogue O SAL DA HISTÓRIA.
Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.
Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.
Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.
As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.
Poucos eram os momentos
de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante
que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável
do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente
relatavam um pouco das suas sofridas existências.
Estas mondinas, como por
aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras
tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto,
amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.
A “malta” e a gente de
Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de
partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que
definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais
conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e
contribuía para que, por norma, morressem cedo.
Os de fora vinham em
setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da
terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.
Viviam inevitavelmente sob o telhado do dono da herdade, em imensos "casões", “aos cem de cada vez e mais, sobre uma faixa de palha de arroz ou de mato, cobertos com a sua manta” ou, na melhor das hipóteses, dormiam em esteiras de junco suspensas das paredes. Camas eram raras.
No campo, os do Alentejo
tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a
cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à
hora da refeição (na imagem).
Para alimentar os da
“malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo
circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.
Apesar de homens e
mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio
de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com
um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização
ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um
casal no rancho.
Hoje, o arroz está
totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir
drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também
nos serviços. Os migrantes são outros.
À margem
Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de
encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais
próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes
tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.
Diferente do tradicional cante, é uma moda de
improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.
Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na
taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era
ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode
ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.
Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os
namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.
Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti
uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e
especial enfoque no Ladrão do Sado.
Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo
dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que
ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles
trabalhadores que pouco ou nada tinham.
É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos,
pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos
para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes
seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas
raízes peculiares.
Mas isso é outra
história…
Agradeço a Maria Antónia
Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.
Fontes
Diário de Lisboa, 01.10.1945,
03.10.1945, 04.10.1945.
António
José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado
- YouTube
Cortesia de Miguel Ângelo
Catarino Vaquinhas
Município e Direcção Regional da Cultura apostados em
preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)
Isabel Castro Henriques, Os
pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem
africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer
do Sal
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https://osaldahistoria.blogs.sapo.pt/a-estranha-gente-dos-arrozais-12377
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