terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Trabalho escravo nos arrozais de Alcácer do Sal durante o salazarismo

 


A estranha gente dos arrozais 

Um excelente artigo publicado no blogue O SAL DA HISTÓRIA.


Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.

Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.


Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.



As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.


Mondavam, ceifavam, faziam o que fosse preciso, quase sempre vergadas sobre si próprias. Descalças e com água até meio da perna, mal tinham ordem de levantar os olhos, quanto mais a cabeça, que o capataz estava à espreita, de vara na mão.

Poucos eram os momentos de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente relatavam um pouco das suas sofridas existências.


Para se abrigarem do sol inclemente e outras agruras, inventaram a curiosa indumentária que junta saias – arregaçadas – e calças – que protegiam do restolho áspero e das sanguessugas, mas não do “mal da monda”, as bolhas e feridas deixadas pelos pesticidas, tratadas depois com pomadas e mezinhas. Lenço na cabeça, tapando parte do rosto, manga comprida ou meias de senhora a cobrir os braços.


E chapéu. Este, artigo de luxo mais do que de utilidade, era “obrigatório” e chegava a custar cinco dias de trabalho. Constituía o orgulhoso rasgo de vaidade feminina, tantas vezes decorado com fitas, flores, objetos leves e a fotografia do moço eleito pelos seus corações.

Estas mondinas, como por aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto, amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.

A “malta” e a gente de Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e contribuía para que, por norma, morressem cedo.

Os de fora vinham em setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.

 


Viviam inevitavelmente sob o telhado do dono da herdade, em imensos "casões", “aos cem de cada vez e mais, sobre uma faixa de palha de arroz ou de mato, cobertos com a sua manta” ou, na melhor das hipóteses, dormiam em esteiras de junco suspensas das paredes. Camas eram raras.

No campo, os do Alentejo tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à hora da refeição (na imagem).

Para alimentar os da “malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.

 


Ao sábado largavam o trabalho com luz e acorriam à vila a gastar a rala semanada. Folgavam ao domingo e era neste dia ou quando o patrão consentia numa adiafa – a comemorar o fim da colheita, por exemplo - que se entregavam a um bailarico, que era o único divertimento conhecido.

Apesar de homens e mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um casal no rancho.


 Nasceram assim autênticas aldeias, que faziam lembrar terras africanas e que já não existem. Também assim se criaram e fixaram muitas famílias que se tornaram alcacerenses.

Hoje, o arroz está totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também nos serviços. Os migrantes são outros.

 À margem

Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.

Diferente do tradicional cante, é uma moda de improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.

Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.

Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.

Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e especial enfoque no Ladrão do Sado.

Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles trabalhadores que pouco ou nada tinham.

É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos, pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas raízes peculiares.

 Mas isso é outra história…


Agradeço a Maria Antónia Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.

 

Fontes

Diário de Lisboa, 01.10.1945, 03.10.1945, 04.10.1945.

 

António José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado - YouTube

Cortesia de Miguel Ângelo Catarino Vaquinhas

Município e Direcção Regional da Cultura apostados em preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)

Isabel Castro Henriques, Os pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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https://osaldahistoria.blogs.sapo.pt/a-estranha-gente-dos-arrozais-12377

 


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