A mensagem de Donald Trump foi clara para os seus apoiantes e adversários quando fez “a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de ‘cruzada’ armada”, diz ao Expresso a historiadora Irene Flunser Pimentel - CRISTINA PERES
O assassínio de George Floyd por um polícia em Mineápolis expôs ainda mais a deriva autoritária do Presidente dos Estados Unidos. A América está na rua há uma semana, em protestos, e Donald Trump ameaça enviar o exército para alcançar o que considera que nem a polícia nem a Guarda Nacional conseguiram ainda: repor a ordem.
Para ajudar a ler a
tradição de violência racista que se reconhece nos Estados Unidos e a
ultrapassagem de limites que seria impensável até há pouco, o Expresso pediu à
historiadora Irene Flunser Pimentel que comentasse a ameaça à democracia a que
se assiste.
Doutorada em História
Institucional e Política Contemporânea, Irene Pimentel é investigadora do
Instituto de História Contemporânea da Nova-Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas. É co-autora e autora de extensa bibliografia, que inclui “A
História da PIDE” (2007), “Espiões em Portugal durante a II Guerra
Mundial” (2013) e “História da Oposição à Ditadura em
Portugal” (2014). No passado dia 28 de maio, deu uma aula online sobre o
golpe que, naquele mesmo dia de 1926, fez ascender o fascismo em Portugal.
Numa série de artigos de
opinião em jornais consagrados lê-se que o caso George Floyd decorre de uma
tradição de violência nos EUA, mas que desta vez se ultrapassou uma fronteira.
Concorda?
Subjetivamente, diria que esta fronteira foi ultrapassada devido a ter
sido one too many e porque estamos no século XXI e Obama foi
Presidente dos Estados Unidos. Mas, na realidade, penso haver uma razão muito
objetiva: o assassínio foi filmado, durou muitos minutos, foi precedido por
tortura e à vista de muitos, que chamaram a atenção para o que estava a
acontecer e para a súplica de George Floyd, segundo o qual “não podia
respirar”.
Penso ter funcionado a
situação de empatia (colocar-se na posição da vítima), embora, desgraçadamente,
ninguém tenha conseguido salvar George Floyd, um ser humano, com nome e
identidade. Devo dizer que fiquei muito revoltada, mas não consegui partilhar aquele
vídeo que retratava uma situação limite de crueldade desumana e infamante.
Manifestei-me sobre o caso, mas sem mostrar a situação de sofrimento e morte.
Depois, também foi terrível a atitude dos “colegas” polícias, de total
cumplicidade e indiferença pelo que o assassino estava a fazer, quando a
obrigação de qualquer ser humano é salvar uma pessoa em perigo. O que todos
sentimos, de forma impotente, é que deveríamos, e os que assistiam deveriam ter
reagido fisicamente contra o agressor. Não sei o que teria acontecido em
Portugal, onde por vezes há também violência policial e racista. Mas sei que
nos EUA até se aprende a não responder ou reagir mal à polícia, que está armada
até aos dentes.
O joelho no pescoço, a
subjugação prolongada pelo polícia pareciam afirmar “faço o que eu quero”,
uma clara “peça” de informação dirigida aos defensores da supremacia
branca, que devem todos ter entendido que “é tudo nosso”.
Também me ocorreu precisamente isso. Lembramo-nos de algo que hoje – felizmente
– também já é criminalizado se for feito a animais (aqui ainda temos as
touradas). Também nos fez recordar a escravatura e o colonialismo, até porque –
ainda não o disse, mas é relevante – a vítima é um afro-americano e o algoz um
branco, pelos vistos cioso de expressar o que pensa ser a sua supremacia (de
assassino). Penso que o supremacismo branco, o populismo nacionalista de
extrema-direita tem feito rapidamente um caminho que era impensável há uns
anos, pois é potenciado pelo próprio Presidente. O que tudo também revela é que
o mal, o racismo, o supremacismo estão banalizados e normalizados, neste século
XXI, e são incentivados a partir de cima, numa sociedade e numa situação
política que guarda aspectos democráticos.
Ou seja, estamos
baralhados?
Estamos baralhados, mas não deveríamos estar, com a possibilidade de crimes e a
falência da ética, escassos 80 anos históricos após o Holocausto e a II Guerra
Mundial. E com aspetos semelhantes e reconhecíveis com os anos 20 e 30 do
século XX.
Donald Trump apoia-se no
último slogan da sua campanha de 2016 ainda por esgotar, “Law
& Order”, dado que o estado da economia e a subida do desemprego
denunciam a falência do “Make America great again”. A deriva autoritária
do Presidente põe em causa outros níveis do poder, desacreditando os
governadores dos estados por não serem capazes de atirar a matar, em último
caso. Qual será o limite? Uma guerra civil?
A expressão é mesmo “Law and order” against “Law and
order”, através desta deriva autoritária, que já se revelava mas a partir
de ontem subiu um patamar mortal, e com o apoio de parte dos norte-americanos.
Trump e os seus estão acossados, com a situação económica e de desemprego e com
a pandemia, que não conseguem debelar nem atenuar e que lhes pode retirar –
oxalá – a vitória nas eleições de novembro. Mas essa deriva já era muito
evidente na ocupação de lugares na Justiça, na manipulação da verdade e na
utilização da comunicação social. Ontem [segunda-feira 1 de junho] assistiu-se
a uma terrível novidade: após já ter tentado colocar em causa o poder dos
governadores e dos mayors no desconfinamento durante a
pandemia Trump falou com eles – parece que na sequência de um telefonema com
Vladimir Putin (!) – dizendo que eram moles se não atuassem de forma
repressiva. Depois fez o discurso da autoridade (autoritarismo), em que a
palavra “dominar” surgiu várias vezes, afirmando que chamava o Exército, o que
penso não se poder fazer internamente para colocá-lo contra os
norte-americanos. E, após dizer isso tudo numa conferência de imprensa em que
não admitiu perguntas, caminhou até ao carro, para se dirigir em comitiva, com
filha, genro e vice-presidente, até à Igreja de Washington, à porta da qual
tirou uma foto de Bíblia na mão. A bispa já condenou esse aproveitamento da sua
Igreja. A mensagem foi clara, para apoiantes e adversários: a ameaça simbólica
de estar a enveredar para uma situação de “cruzada” armada. Em simultâneo as
televisões mostravam, a polícia (não a de Washington, como já foi esclarecido),
mas a federal, que de imediato varreram com brutalidade as ruas de manifestantes
pacíficos, antes de vigorar o recolher obrigatório decidido pelas autoridades
de DC [Distrito de Colúmbia, onde fica a capital dos EUA]. Tudo filmado e
reportado por dezenas de jornalistas e fotógrafos. O que me faz dizer que a
coreografia – à boa maneira fascista – foi toda minuciosamente organizada para
os seus apoiantes, que continuam a existir, faça Trump o que faça. Não foi ele
que disse que, mesmo se matasse alguém na rua, a sua popularidade não
desapareceria? Penso que o termo guerra civil é muito forte e não deve ser
gratuitamente usado, mas o que ele sempre fez e está a fazer é dividir os
norte-americanos, para a guerra civil. Trump já começou a guerra civil, que
agora militarizou e policiou. Ainda hoje [terça-feira 2 junho] uma amiga
norte-americana revelou-me o tremendo medo em que está, pois as pessoas não
estão preparadas para esta ascensão da violência.
Será tudo isto possível
porque Trump vive isolado numa lógica de aparições para a TV e palavras de
ordem e incitamento à violência via Twitter. De que pode valer-lhe o apoio da
extrema-direita, dos supremacistas brancos, do Klu Klux Klan e de outros poderes
subterrâneos?
O homem é um narcísico que criminosamente só surge na televisão para dizer
disparates (que os seus apoiantes adoram) e mentiras e atiçar através do
Twitter. Não disse ele, contra a ciência, que tinha remédio para o covid-19?
Injetar detergente, expor-se a ultravioletas e tomar o medicamento contra a
malária. É um especialista nas fake news, que, ao fazer equivaler
verdade e mentira, eliminam qualquer ética. Trump é o verdadeiro populista
demagogo, manipulador com frases simples e curtas, que ele cultiva com perícia
– e está a ser aconselhado nisso –, as suas aparições como homem providencial.
Não conheço suficientemente os EUA para poder dizer até que ponto a
extrema-direita, KKK e outros mais subterrâneos são eficazes. Mas sabe-se que
estão a potenciar a violência das manifestações, que Trump atribui
exclusivamente ao movimento Antifa e a “anarquistas”, quando isso serve os seus
propósitos de desestabilização e desordem. As aparições a favor de Trump e do
desconfinamento de gente armada nos EUA banalizaram a extrema-direita, à
maneira das S.A. na Alemanha nazi. Eles não pareciam muito numerosos, mas podem
ter querido dar essa aparência.
Um ex-responsável por uma pasta da justiça escreve
no “The Guardian” que Trump já não preside a nada, que se demitiu de
administrar, que não trata da crise que tem em mãos, só incita à divisão, que
declarou o poder central não responsável pelo combate à pandemia atirando o
ónus das dificuldades para os governadores... Como analisa esta reação?
Li esse artigo e penso que tem toda a razão. Trump joga golfe, diz disparates e
mentiras, mas não governa nem administra; nem ninguém por ele. Curiosamente,
nunca se foi tão longe na opinião pública na condenação e crítica a Trump. Mas
o problema é até esse, não serve de nada, pois quem lê “The Washington Post”,
“The New York Times” e vê a CNN não são os mesmos que veem a Fox News. Mas os
EUA ainda não parecem estar ao nível do Brasil e espero que as instituições
democráticas, o Congresso, os mayors, os governadores, a
comunicação social (que não está parada) e o aparelho de justiça – aquele ainda
não tomado por Trump – reajam. Até já houve uma tentativa de impeachment que
deu em nada!
Gostaria que identificasse as atitudes desta
administração que correspondem ao modus operandi da
extrema-direita. De fascistas? Há ressonâncias de outros tiranos? Ou de
ditaduras, se for o caso.
Assim como nós conhecemos a História – aqueles que a conhecem – também a
extrema-direita nacionalista, supremacista, racista e xenófoba a conhece.
Grupos de extrema-direita paramilitares introduzem-se nas manifestações de
protesto contra o crime perpetrado contra George Floyd para iniciar a violência
que, segundo dizem, trará a “nova América”. Só não falo em fascismo, enquanto
historiadora, pois a história não se repete e o fascismo fez parte de um
determinado contexto histórico mundial, que não é o mesmo do dos anos 1920 e
1930. Mas, enquanto cidadã, não me repugna falar de fascismo, pois – mal ou bem
– clarifica e caracteriza aquilo de que estamos a falar e produziu determinados
resultados monstruosos. Desde que há escrita, sabemos que o ser humano não se
modificou muito, desde o Egito antigo, Grécia e Roma. Sabemos o que é o poder e
a tirania, e como funciona, das tragédias gregas a Shakespeare. Hoje
[terça-feira 2 de junho], uma historiadora norte-americana afirmou que já
esperava há muito o que se passa desde que Trump foi eleito. Nunca pensei que
fosse atuar de forma democrática, atendendo aos seus antecedentes (nem
Bolsonaro), apenas não sabia como iria atuar para acabar com a democracia.
Temos de começar a falar assim: a democracia está em perigo e todos somos
poucos para defendê-la. Primeiro, foram eleitos os candidatos a ditadores,
depois ocuparam os lugares na Justiça, fizeram jornais e canais televisivos e
usaram as redes sociais, muito adaptadas ao populismo. O que nos baralhou um
pouco relativamente ao fascismo foi que estes candidatos não precisaram de
ilegalizar e proibir partidos nem instaurar a censura. Dividiram tudo e todos,
fizeram equivaler a verdade à mentira e diabolizaram os adversários políticos e
as elites, erigindo-os como inimigos principais do “povo”. Há aspetos parecidos
com o nazismo: a escolha de bodes expiatórios, a exploração da insegurança e
dos medos da população, a banalização da violência e do racismo, bem como a
transformação da ética e da justiça nos seus contrários. Hannah Arendt avisou
que, na Alemanha nazi, foram raros os alemães que se ergueram contra o regime,
a violência contra os “outros”, fossem adversários políticos ou raciais, porque
é difícil usar o imperativo categórico kantiano e distinguir o bem do mal e agir
em conformidade. E é sobretudo difícil quando o crime vem de “cima”. Só espero
que nós hoje consigamos defender a democracia e a pandemia não é boa
conselheira.
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