sexta-feira, 11 de abril de 2025

21 de abril de 1961: Os primeiros soldados portugueses partem para a guerra colonial

 

Fotos tiradas por Fernando Mariano Cardeira aquando do embarque do seu irmão para Moçambique, a bordo do paquete Império, a 12 de Abril de 1969.

21 de abril de 1961: Os primeiros soldados partem para a guerra a bordo do Niassa

Neste dia, mais de 2.000 soldados rumavam a Luanda. Foram combater um inimigo que não era o seu, por uma pátria que os transformou em carne para canhão. Fotos de Fernando Mariano Cardeira.

Para Angola, rapidamente e em força, clamava Salazar a 13 de abril de 1961, uma semana antes de partirem os primeiros contingentes de tropas portuguesas: a 19 de abril, por via aérea e, a 21 de abril, por via marítima.

Há exatamente 60 anos, mais de 2.000 soldados embarcaram no Niassa, o primeiro paquete fretado para transporte de militares e de material de guerra, por portaria de 4 de março de 1961. O Niassa zarpou do cais de Santa Apolónia a 21 de janeiro, chegando a Luanda 10 dias mais tarde, a 1 de maio, uma segunda-feira.

1961 e a anunciada queda do colonialismo português

Entre finais de 1960 e inícios de 1961, o mito da pax imperial portuguesa é fortemente abalado. O impacto do processo de independência do antigo Congo belga terá tido repercussões consideráveis, sobretudo entre os bacongos do Norte de Angola, trazendo expectativas de libertação e independência.

Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961

A revolta da Baixa de Cassange, uma região que, em duas extensas zonas, se encosta ao Congo, tornar-se-ia, por sua vez, uma espécie de ensaio geral para a guerra. Na Baixa de Cassange vigorava o regime da cultura obrigatória do algodão. Os agricultores e as suas famílias tinham de cultivar o algodão, em detrimento de culturas que assegurariam a sua subsistência alimentar, e vender a sua produção à Cotonang. Esta companhia estipulava preços miseráveis e ainda tinha poder para classificar como de 2ª o algodão de 1ª. Na região grassava uma pobreza extrema e os camponeses eram sujeitos a todo o tipo de violência e arbitrariedades. No final de 1960, os camponeses começaram a parar a produção, a recusar pagar impostos e a insurgirem-se contra a Cotonang e os colonos portugueses. A 4 de janeiro de 1961, negaram-se a voltar ao trabalho e queimaram as sementes distribuídas pela companhia. A partir daí, deu-se o esmagamento militar da revolta. Entraram em campo a 3ª e a 4ª Companhias de Caçadores e a Força Aérea. Várias sanzalas foram totalmente dizimadas e muitos dos seus habitantes mortos.

O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola

por Diana Andringa

Entretanto, na madrugada de 4 de fevereiro, quando a revolta do Cassange ainda não tinha sido contida, guerrilheiros africanos atacaram, em Luanda, a casa de reclusão militar, a cadeia administrativa de São Paulo e o Quartel da Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública. O objetivo era libertar os presos políticos e arrecadar armamento. No dia seguinte, no enterro de alguns soldados mortos, eclodem conflitos. A repressão colonial é feroz. Perante as represálias, os guerrilheiros voltam a atacar a cadeia de São Paulo e a Companhia Indígena a 11 de fevereiro.

15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola

Pouco mais de um mês depois, dá-se a sublevação do 15 de março, protagonizada pela UPA (União das Populações de Angola). Os ataques foram fulminantes e a violência e ferocidade dos métodos utilizados atrozes. Brancos, mestiços e alguns negros foram alvo da barbárie. Ao contrário do que foi propalado, estes ataques não constituíram uma surpresa para as forças portuguesas. Já tinham existido vários alertas da própria PIDE e das autoridades administrativas no que respeita à iminência de um ataque. No entanto, o Governo de Salazar nada fez. Ao terror negro, os colonos responderam com terror branco, agravando o fosso racial de forma que se provou ser irreversível. A vaga repressiva do regime salazarista vai atingir vários religiosos e determinar a sua prisão, sob a acusação de incitar a revolta. Entre eles, o cónego Manuel das Neves.

A nível interno, o ano de 1961 também trouxe alguns revezes a António de Oliveira Salazar. O assalto ao paquete Santa Maria, a 22 de janeiro, conduzido por um alto dignitário do Estado Novo, Henrique Galvão, expõe a vulnerabilidade do regime. A 13 de abril, o ditador português é confrontado com uma tentativa de golpe de Estado por parte de homens como o ministro da Defesa Nacional, general Júlio Botelho Moniz, o ministro do Exército, coronel Almeida Fernandes, o subsecretário de Estado do Exército, tenente-coronel Costa Gomes, e o Chefe do Estado-Maior-General (CEMGFA), general Beleza Ferraz. Na noite desse mesmo dia, Salazar surge perante as câmaras da televisão portuguesa para anunciar a remodelação governamental e explicar porque assumia a pasta da Defesa: “se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional [...] a explicação concretiza-se numa palavra e essa é Angola [...] Andar rapidamente e em força é o objetivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão [...] a fim de defender Angola e com ela a integridade da Nação”. Uma semana depois, partem então os primeiros contingentes de tropas portuguesas para Angola.

O ano de 1961 vai ficar ainda marcado por acontecimentos como a publicação, em janeiro, do programa para a democratização da República, pelo Oposição Democrática, em que se repudia qualquer manifestação de imperialismo colonialista; o “salto” dos estudantes da Casa de Estudantes do Império, que irão engrossar as fileiras dos Movimentos de Libertação Nacional; e o desvio, a 10 de novembro, por parte de Palma Inácio e Camilo Mortágua, do Super Constellation da TAP, do voo Casablanca-Lisboa. Este foi o primeiro desvio de um avião comercial de que há registo internacionalmente. A ação, que ficou conhecida como a “Operação Vagô”, incluiu o lançamento de 100 mil panfletos sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro.

Goa, ou o princípio do fim

por Fernando Rosas

A nível internacional, a 15 de março, é aprovada uma moção do Conselho de Segurança da ONU a condenar a situação em Angola, votada pelos Estados Unidos e pela União Soviética, pela primeira vez; e a 4 de abril é aprovada uma moção a favor da autodeterminação de Angola pela Assembleia Geral da ONU. Neste mês é ainda instituído pela ONU um Subcomité dos Cinco, a fim de investigar a situação relacionada com os acontecimentos em Angola. A 1 de setembro tem início a I Conferência Plenária dos Países Não Alinhados em Belgrado, que apela à ajuda internacional do povo angolano, e a 27 de novembro é criado, no seio da ONU, o Comité da Descolonização. O final do ano também não trouxe boas novidades a Salazar, com a apresentação, a 19 de dezembro, da rendição das tropas portuguesas ao comando indiano. E Goa foi o princípio do fim.

Uma Guerra injusta, imoral, maldita



Em 1961, embarcaram 33 mil homens, os primeiros dos 800 mil enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e Moçambique. Até à Revolução de 1974, mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra foram transportados para as ex-colónias por via marítima.

Os paquetes mais utilizados para o efeito foram o Vera Cruz, que realizou o maior número de viagens, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje. Em 1961, nove paquetes em missão militar realizaram 19 viagens com destino aos palcos da Guerra Colonial. O número de viagens aumentou para 27 em 1963 e para 33 em 1967. O Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, passou a ser local privilegiado de escoamento de tropas e colonos.



“Os soldados partiam para Angola, com a confiança vinculada no rosto e a serena garantia de que iam combater por uma causa justa (…) Lisboa viu-os partir. E as esposas, mães e irmãs acenaram-lhes com orgulho”. Este era o relato da propaganda do regime.

Mas os soldados, na sua grande maioria, eram pouco mais do que rapazes. Muitos apenas conheciam as aldeias onde tinham nascido e os quartéis onde fizeram a recruta. E mal sabiam ler e escrever, ou nem isso. Não tinham qualquer ideia do que os esperava em Angola. Os primeiros contingentes foram aclamados como heróis à chegada a Luanda, mas estavam mal preparados, não estavam devidamente equipados e nem sequer sabiam bem o que estavam ali a fazer. Médicos militares no terreno alertavam para o alarmante estado de subnutrição e desidratação dos soldados e a inexistência de cuidados de saúde adequados.

Wiriamu: O massacre esquecido

Os militares portugueses enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e Moçambique ocuparam, pilharam, queimaram aldeias, torturaram, mataram. São vários os relatos de agressões sexuais contra as mulheres africanas e, inclusive, de violações em grupo. O relato do massacre de Wiryamu, Chawola e Juwau (1972), no distrito de Tete, em Moçambique, levado a cabo por tropas coloniais portuguesas e pela PIDE-DGS, dá-nos conta das atrocidades, dos crimes hediondos cometidos durante a Guerra Colonial, com o extermínio de comunidades inteiras – incluindo crianças, mulheres, idosos – com requintes de uma perversidade sem limites.

Os soldados portugueses, por sua vez, serviram como verdadeira “carne para canhão”.



Muitos não voltaram, foram enterrados no cenário de combate ou os seus corpos não foram encontrados. Outras famílias puderam enterrar os seus entes queridos. Às famílias dos soldados mortos, foi cravada uma medalha ao peito, nas cerimónias das comemorações do dia de Portugal.

Estilhaços de uma guerra maldita

Os soldados que voltaram trouxeram as memórias de matar, ver morrer, de morrer aos poucos. Os estropiados foram rapidamente escondidos pelo regime fascista, que não queria ver divulgados os horrores da guerra. Uns, atirados para o Depósito de Indisponíveis, na Graça, em Lisboa. Outros, reencaminhados para as suas aldeias, esquecidos, sem qualquer possibilidade de recuperarem as suas anteriores ocupações.

Às mulheres portuguesas foi atribuído o papel de apoiar o esforço de guerra: parir guerreiros para a defesa do “Império” e apoiá-los, bem como aos maridos, irmãos e todos os homens enviados para as ex-colónias; apoiar na assistência aos feridos e desprotegidos; trabalhar nas fábricas de munições. Foi-lhes imposto um sofrimento silencioso, porque ir para a guerra só podia ser motivo de orgulho. E herdaram o stress pós-traumático daqueles que de lá vieram.




Lá, as mulheres africanas guardam as cicatrizes das agressões sexuais e cuidam dos filhos deixados pelos soldados portugueses, nunca reconhecidos pelos pais e pelo Estado Português.

As feridas abertas da Guerra Colonial

por Mariana Carneiro

A Guerra Colonial durou mais do dobro da Segunda Guerra Mundial e fez milhares de mortos portugueses e africanos. Este conflito representou, em termos humanos, um esforço cinco vezes superior ao que os EUA mobilizaram para o Vietname. Apenas entre o contingente português, contabilizaram-se 8.831 mortos, 30 mil feridos, 4.500 mutilados, 14 mil deficientes físicos. Mais de 100 mil diagnosticados com perturbação de stress pós-traumático.

A devastação causada pelo colonialismo português nos territórios das ex-colónias tem ainda repercussões profundas, ao ter comprometido abruptamente o desenvolvimento económico, social, cultural das suas sociedades, espoliado os seus bens e os seus recursos, escravizado, violentado e tentado aniquilar a identidade e a cultura dos seus povos.


FONTES:

AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos Gomes. Guerra Colonial. Edição: Editorial Notícias, abril de 2000

CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena. As Voltas do Passado - A Guerra Colonial e as Lutas de Libertação. Editor: Tinta da China, junho de 2018

DHADA, Mustafah. O Massacre Português de Wiriamu - Moçambique, 1972. Edição: Tinta da China, outubro de 2016.

GOMES, Catarina. Furriel não é Nome de Pai. Lisboa: Tinta da China, Edição:05-2018.

MATEUS, Dalila Cabrita. Angola 61 - Guerra Colonial: Causas e Consequências. Edição: Texto Editores, janeiro de 2011.

RIBEIRO, Margarida Calafate. África no Feminino: as Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial. Porto: Afrontamento, 2007.

ROSAS, Fernando. História a História – África. Edição: Tinta da China, março de 2018 ‧ ISBN: 9789896714215

Arquivo Digital do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra

Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961, artigo de Aida Freudenthal, publicado no Esquerda.net

15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola, artigo de Maria da Conceição Neto, publicado no Esquerda.net

O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola, artigo de Diana Andringa, publicado no Esquerda.net

Goa, ou o princípio do fim, artigo de Fernando Rosas, publicado no Esquerda.net

Wiriamu: O massacre esquecido, artigo de Carmo Vicente, publicado no Esquerda.net

Estilhaços de uma guerra maldita, artigo de Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net

As feridas abertas da Guerra Colonial, artigo de Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net

 

Artigo partilhado na íntegra e disponível em https://www.esquerda.net/artigo/21-de-abril-de-1961-os-primeiros-soldados-partem-para-guerra-bordo-do-niassa/73984


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Trabalho escravo nos arrozais de Alcácer do Sal durante o salazarismo

 


A estranha gente dos arrozais 

Um excelente artigo publicado no blogue O SAL DA HISTÓRIA.


Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.

Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.


Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.


As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.


Mondavam, ceifavam, faziam o que fosse preciso, quase sempre vergadas sobre si próprias. Descalças e com água até meio da perna, mal tinham ordem de levantar os olhos, quanto mais a cabeça, que o capataz estava à espreita, de vara na mão.

Poucos eram os momentos de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente relatavam um pouco das suas sofridas existências.


Para se abrigarem do sol inclemente e outras agruras, inventaram a curiosa indumentária que junta saias – arregaçadas – e calças – que protegiam do restolho áspero e das sanguessugas, mas não do “mal da monda”, as bolhas e feridas deixadas pelos pesticidas, tratadas depois com pomadas e mezinhas. Lenço na cabeça, tapando parte do rosto, manga comprida ou meias de senhora a cobrir os braços.



E chapéu. Este, artigo de luxo mais do que de utilidade, era “obrigatório” e chegava a custar cinco dias de trabalho. Constituía o orgulhoso rasgo de vaidade feminina, tantas vezes decorado com fitas, flores, objetos leves e a fotografia do moço eleito pelos seus corações.

Estas mondinas, como por aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto, amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.

A “malta” e a gente de Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e contribuía para que, por norma, morressem cedo.

Os de fora vinham em setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.

 



Viviam inevitavelmente sob o telhado do dono da herdade, em imensos "casões", “aos cem de cada vez e mais, sobre uma faixa de palha de arroz ou de mato, cobertos com a sua manta” ou, na melhor das hipóteses, dormiam em esteiras de junco suspensas das paredes. Camas eram raras.

No campo, os do Alentejo tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à hora da refeição (na imagem).

Para alimentar os da “malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.

 


Ao sábado largavam o trabalho com luz e acorriam à vila a gastar a rala semanada. Folgavam ao domingo e era neste dia ou quando o patrão consentia numa adiafa – a comemorar o fim da colheita, por exemplo - que se entregavam a um bailarico, que era o único divertimento conhecido.

Apesar de homens e mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um casal no rancho.


 Nasceram assim autênticas aldeias, que faziam lembrar terras africanas e que já não existem. Também assim se criaram e fixaram muitas famílias que se tornaram alcacerenses.

Hoje, o arroz está totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também nos serviços. Os migrantes são outros.

 À margem

Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.

Diferente do tradicional cante, é uma moda de improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.

Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.

Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.

Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e especial enfoque no Ladrão do Sado.

Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles trabalhadores que pouco ou nada tinham.

É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos, pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas raízes peculiares.

 Mas isso é outra história…


Agradeço a Maria Antónia Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.

 

Fontes

Diário de Lisboa, 01.10.1945, 03.10.1945, 04.10.1945.

 António José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado - YouTube

Cortesia de Miguel Ângelo Catarino Vaquinhas

Município e Direcção Regional da Cultura apostados em preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)

Isabel Castro Henriques, Os pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-001

AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-002

AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-004

AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-005

PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0142

PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0146

PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0115


Disponível em https://osaldahistoria.blogs.sapo.pt/a-estranha-gente-dos-arrozais-12377


 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Orçamento do Estado

 


Introdução

A Assembleia da República (AR) desempenha um papel central e indispensável na definição e execução das prioridades e desafios consignados no Orçamento do Estado (OE). Este processo é fundamental, não apenas para a gestão financeira do país, mas também para garantir a transparência, a responsabilização e a democracia participativa. O OE é o documento que contém a definição das receitas e despesas previstas para o ano seguinte, o que permite prever como e onde os recursos públicos serão aplicados. A intervenção parlamentar é crucial para assegurar que as decisões relativas à alocação daqueles recursos refletem os efetivos interesses e necessidades da população.

Intervenção Parlamentar e Democracia

A intervenção da AR no processo orçamental é um exercício de democracia e responsabilidade, pois permite aos representantes da população, e por si eleitos, debater, ajustar e validar as propostas do Governo, garantindo assim que o OE reflete uma gama alargada de interesses e necessidades sociais.

­ Transparência e Prestação de Contas

A promoção da transparência é um dos principais benefícios da intervenção parlamentar. O debate público gerado e as audições realizadas, designadamente com especialistas, como o Tribunal de Contas (TdC), o Conselho Económico e Social (CES) e o Conselho de Finanças Públicas (CFP), permitem um escrutínio detalhado das propostas orçamentais apresentadas. Desta forma, são reveladas as suas implicações económicas e sociais, o que é essencial em termos de prestação de contas, pois, ao fornecerem uma visão técnica e independente sobre o Orçamento, permitem assegurar que as decisões financeiras são fundamentadas, justificadas e compreendidas pelos cidadãos.

Contudo, as audições com os Ministros são geralmente as mais divulgadas pela comunicação social porque, ao permitirem que os Deputados questionem os Ministros acerca das opções políticas, das prioridades orçamentais e da gestão dos recursos públicos, representam o momento em que a Assembleia a República exerce um escrutínio político direto sobre as decisões governamentais. Como resultado, é ampliada a noção de transparência fornecida pela avaliação técnica realizada pelos especialistas.

Por último, importa assinalar que a transparência é uma das principais ferramentas de defesa contra a corrupção e a má gestão e promove a confiança pública nas instituições.

­ Participação Cívica

A participação cívica promovida pela discussão do OE na Assembleia da República permite aos Deputados, enquanto representantes dos cidadãos, influenciar o Orçamento, o que transforma o processo orçamental num mecanismo de participação democrática. Por sua vez, esta participação é ampliada pelas audições públicas e pelos contributos apresentados pelos diversos setores da sociedade civil, que podem expressar as suas preocupações e sugestões. O diálogo entre os cidadãos e os seus representantes é indispensável a uma democracia saudável e funcional.

A Definição do Orçamento do Estado - Desafios

De entre os desafios que o processo de definição e execução do OE coloca, destacam-se a necessidade de conciliar diferentes interesses, por vezes divergentes, a gestão das limitações financeiras e a adaptação a contextos económicos em mudança.

­ Conciliação de interesses divergentes

A AR é composta por Deputados de diferentes partidos, cada qual com as suas próprias ideologias, prioridades e agendas políticas, pelo que a conciliação destes interesses, no sentido de chegar a consenso sobre o OE, é um grande desafio. As negociações e a assunção de compromissos são parte integrante deste processo, exigindo habilidades de diálogo e cooperação entre os diferentes grupos parlamentares. Esta diversidade de opiniões é uma fonte de complexidade para o processo orçamental, mas também uma das suas forças.

­ Limitações financeiras

A gestão das limitações e restrições orçamentais de natureza financeira constituí também um enorme desafio. O OE deve equilibrar as necessidades e aspirações da população com a realidade dos recursos financeiros disponíveis. A disciplina orçamental é crucial para evitar défices excessivos e para garantir a sustentabilidade financeira do Estado a longo prazo, equilíbrio geralmente difícil de alcançar, sobretudo em contextos de crise económica ou de elevada dívida pública. Nestes momentos, embora se possa considerar que a austeridade fiscal seja necessária para correção dos desvios, todos os envolvidos no processo sabem que pode gerar significativas tensões sociais e políticas.

­ Contextos económicos em mutação

A economia é dinâmica e sujeita a rápidas mudanças, que podem afetar as previsões e os planos estabelecidos no OE, pelo que a Assembleia da República deve estar preparada para promover o ajustamento do Orçamento em resposta às realidades económicas que o exijam, tais como recessões, crises financeiras ou mudanças nas políticas internacionais. Esta flexibilidade é determinante para a resiliência económica de Portugal. Além disso, as incertezas globais, como as flutuações nos mercados financeiros, as crises geopolíticas e as mudanças climáticas, colocam desafios adicionais à gestão orçamental.

A Execução do Orçamento do Estado - Impactos

Depois da aprovação do OE, é fundamental que a sua execução, uma responsabilidade do Governo, seja um processo acompanhado e monitorizado pela AR, na medida em que a eficácia com que o Orçamento é implementado por parte do Executivo governamental tem um impacto direto na vida dos cidadãos e na economia do país.

­Monitorização e avaliação

As comissões parlamentares têm o papel de acompanhar a implementação das políticas orçamentais, solicitando informações e esclarecimentos ao Governo quando necessário. A avaliação periódica da execução orçamental e a monitorização permanente e contínua da ação do Governo por parte da Assembleia da República, garantem que este está a seguir as diretrizes aprovadas em OE, e permitem intervenções de ajustamento rápidas, caso se identifiquem desvios ou áreas passíveis de melhoria.

Impacto socioeconómico

A forma como a execução do OE é conduzida pelo Governo tem impactos sociais e económicos profundos. As políticas de despesa pública, como investimentos em saúde, educação, infraestruturas e segurança social, são fundamentais ao bem-estar dos cidadãos e ao desenvolvimento do país. A intervenção parlamentar, de carácter regulador, visa assegurar a execução eficaz do OE, garantindo que essas políticas são implementadas de acordo com as prioridades estabelecidas. Esta intervenção parlamentar contribui assim para uma distribuição equitativa dos recursos, para a redução das desigualdades sociais, para a promoção da inclusão e para o fomento do crescimento económico sustentável.

A Intervenção Parlamentar - Casos

A importância da intervenção da AR no processo orçamental pode ser ilustrada por exemplos históricos, que demonstram como o Parlamento pode influenciar significativamente a definição e execução do OE e os seus impactos.

­O Orçamento de 2014 e a austeridade

Um exemplo relevante é o do OE de 2014, durante o período de austeridade imposto pelo programa de ajustamento económico e financeiro. A Assembleia da República enfrentou o desafio de aprovar um Orçamento que incluía medidas de contenção da despesa pública e privada, bem como aumentos de impostos, num contexto de forte oposição social e política. Aqui, destacou-se a enorme dificuldade de equilibrar as exigências de sustentabilidade financeira com a necessidade de proteger os mais vulneráveis, mantendo a coesão social.

­O Orçamento de 2020 e a resposta à pandemia

O OE de 2020 é outro notável exemplo. Este Orçamento teve de ser rapidamente ajustado para responder à emergência nacional e global da pandemia de COVID-19. Neste contexto, a AR aprovou várias medidas extraordinárias, incluindo apoios às empresas e aos trabalhadores, o reforço do sistema de saúde e o aumento das despesas de apoio social. Desta forma, o Parlamento demonstrou a capacidade de responder eficazmente a crises imprevistas e promover o ajustamento do Orçamento às necessidades urgentes do país.

Conclusão

A intervenção da Assembleia da República na definição e execução do Orçamento do Estado é, em si mesma, um pilar da democracia portuguesa, na medida em que se constitui como garante de que o Orçamento reflete as necessidades e prioridades partilhadas pela população, ao promover a transparência e a prestação de contas, ao enfrentar os desafios da gestão financeira pública e adaptação económica a contextos mutáveis e ao assegurar que as decisões financeiras são tomadas de forma transparente, responsável e inclusiva.

Por intermédio do debate democrático e da monitorização rigorosa, o Parlamento assegura que as políticas orçamentais contribuem para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar dos cidadãos.

A intervenção parlamentar no OE é uma expressão concreta da soberania popular e um mecanismo essencial para a governação responsável e eficaz de Portugal. O equilíbrio entre as necessidades de gestão rigorosa e disciplinada dos recursos públicos e a proteção dos interesses e direitos dos cidadãos é a essência de uma democracia saudável e plural.

 

Artur Filipe Lima

 

In Orçamento do Estado 2025 | ComunicAR - Boletim da Assembleia da República | outubro 2024


terça-feira, 17 de setembro de 2024

A Revolta dos Marinheiros de 1936 (Portugal)

                                  

"Os Marinheiros que participaram na revolta de 1936 são transportados para o porto para serem deportados para o campo prisão do Tarrafal em Cabo Verde" © ANTT


#nestedia 8 de setembro de 1936, um grupo de marinheiros dos navios Bartolomeu Dias, Dão e Afonso de Albuquerque decidiram enfrentar a Ditadura com a convicção da vitória de um golpe armado contra o fascismo. O levantamento militar foi o resultado de um forte trabalho de agitação e mobilização do descontentamento existente entre os marinheiros, organizado pela Organização Revolucionária da Armada, estrutura que unia as células do Partido Comunista Português na Marinha de Guerra, com o objetivo assaltar as prisões dos Açores, libertar os companheiros presos e constituir aí um Governo Provisório que exigisse a queda de Salazar.

O governo teve conhecimento dos preparativos e, ao fim de algumas horas, controlou a revolta, ordenando a intervenção da aviação contra os navios sublevados. Salazar ordenou o bombardeamento contra os navios sublevados, a partir da artilharia de costa, e a perseguição dos revoltosos, tendo resultado em 12 mortos. 208 Marinheiros presos, 82 condenados, 44 enviados para a fortaleza de Angra do Heroísmo, 4 presos no Forte de Peniche. Destes, 34 integraram parte do primeiro contingente dos 150 primeiros presos políticos enviados para o campo de concentração do Tarrafal, em outubro de 1936.
As penas de prisão iam de 16 a 20 anos, a maioria dos presos saiu apenas quando o Tarrafal foi encerrado, em 1954, e 5 destes marinheiros morreram no «campo da morte lenta» do Tarrafal.






Imagens:

Fichas Prisionais dos marinheiros revoltosos que morreram no Tarrafal © ANTT
Cândido Alves Barja
Francisco José Pereira
Joaquim Marreiros
Jacinto de Melo Faria Vilaça
Henrique Vale Domingues Fernandes

in https://www.museudoaljube.pt/2024/09/08/revolta-dos-marinheiros-de-1936/, consultada dia 17 de setembro de 2024.

domingo, 29 de janeiro de 2023

O liberalismo: a implantação do liberalismo em Portugal, antecedentes e conjuntura (1807-1820) - VÍDEO E TEXTO

História A - 11.º Ano: a implantação do liberalismo em Portugal, antecedentes e conjuntura (1807-1820). 


gravura in https://nunopeb.wordpress.com/2011/02/10/revolucao-liberal-de-1820/



Além deste vídeo, proponho a leitura do seguinte texto, na página do Parlamento 
(excelentes imagens, notas complementares e indicação de fontes consultadas)

https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/A-Revolucao-Liberal-1820.aspx





A Revolução Francesa

História A - 11.º Ano: A Revolução Francesa. - A Revolução Francesa.

A Revolução Americana - VÍDEO

História A - 11.º Ano: A Revolução Americana. - A Revolução Americana.



A Declaração da Independência



Ler, também, o texto seguinte https://www.infoescola.com/historia/revolucao-americana/

domingo, 24 de julho de 2022

Supremacismo branco e populismo nacionalista de extrema-direita estão a ser promovidos por Donald Trump


Fonte da imagem: https://rr.sapo.pt/noticia/mundo/2024/09/13/trump-quer-deportar-haitianos-e-biden-pede-que-ataques-parem/393582/

 A mensagem de Donald Trump foi clara para os seus apoiantes e adversários quando fez “a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de ‘cruzada’ armada”, diz ao Expresso a historiadora Irene Flunser Pimentel  - CRISTINA PERES

 O assassínio de George Floyd por um polícia em Mineápolis expôs ainda mais a deriva autoritária do Presidente dos Estados Unidos. A América está na rua há uma semana, em protestos, e Donald Trump ameaça enviar o exército para alcançar o que considera que nem a polícia nem a Guarda Nacional conseguiram ainda: repor a ordem.

Para ajudar a ler a tradição de violência racista que se reconhece nos Estados Unidos e a ultrapassagem de limites que seria impensável até há pouco, o Expresso pediu à historiadora Irene Flunser Pimentel que comentasse a ameaça à democracia a que se assiste.

Doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, Irene Pimentel é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Nova-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É co-autora e autora de extensa bibliografia, que inclui “A História da PIDE” (2007), “Espiões em Portugal durante a II Guerra Mundial” (2013) e “História da Oposição à Ditadura em Portugal” (2014). No passado dia 28 de maio, deu uma aula online sobre o golpe que, naquele mesmo dia de 1926, fez ascender o fascismo em Portugal.

Numa série de artigos de opinião em jornais consagrados lê-se que o caso George Floyd decorre de uma tradição de violência nos EUA, mas que desta vez se ultrapassou uma fronteira. Concorda?
Subjetivamente, diria que esta fronteira foi ultrapassada devido a ter sido one too many e porque estamos no século XXI e Obama foi Presidente dos Estados Unidos. Mas, na realidade, penso haver uma razão muito objetiva: o assassínio foi filmado, durou muitos minutos, foi precedido por tortura e à vista de muitos, que chamaram a atenção para o que estava a acontecer e para a súplica de George Floyd, segundo o qual “não podia respirar”.

Penso ter funcionado a situação de empatia (colocar-se na posição da vítima), embora, desgraçadamente, ninguém tenha conseguido salvar George Floyd, um ser humano, com nome e identidade. Devo dizer que fiquei muito revoltada, mas não consegui partilhar aquele vídeo que retratava uma situação limite de crueldade desumana e infamante. Manifestei-me sobre o caso, mas sem mostrar a situação de sofrimento e morte. Depois, também foi terrível a atitude dos “colegas” polícias, de total cumplicidade e indiferença pelo que o assassino estava a fazer, quando a obrigação de qualquer ser humano é salvar uma pessoa em perigo. O que todos sentimos, de forma impotente, é que deveríamos, e os que assistiam deveriam ter reagido fisicamente contra o agressor. Não sei o que teria acontecido em Portugal, onde por vezes há também violência policial e racista. Mas sei que nos EUA até se aprende a não responder ou reagir mal à polícia, que está armada até aos dentes.

O joelho no pescoço, a subjugação prolongada pelo polícia pareciam afirmar “faço o que eu quero”, uma clara “peça” de informação dirigida aos defensores da supremacia branca, que devem todos ter entendido que “é tudo nosso”.
Também me ocorreu precisamente isso. Lembramo-nos de algo que hoje – felizmente – também já é criminalizado se for feito a animais (aqui ainda temos as touradas). Também nos fez recordar a escravatura e o colonialismo, até porque – ainda não o disse, mas é relevante – a vítima é um afro-americano e o algoz um branco, pelos vistos cioso de expressar o que pensa ser a sua supremacia (de assassino). Penso que o supremacismo branco, o populismo nacionalista de extrema-direita tem feito rapidamente um caminho que era impensável há uns anos, pois é potenciado pelo próprio Presidente. O que tudo também revela é que o mal, o racismo, o supremacismo estão banalizados e normalizados, neste século XXI, e são incentivados a partir de cima, numa sociedade e numa situação política que guarda aspectos democráticos.

Ou seja, estamos baralhados?
Estamos baralhados, mas não deveríamos estar, com a possibilidade de crimes e a falência da ética, escassos 80 anos históricos após o Holocausto e a II Guerra Mundial. E com aspetos semelhantes e reconhecíveis com os anos 20 e 30 do século XX.

Donald Trump apoia-se no último slogan da sua campanha de 2016 ainda por esgotar, “Law & Order”, dado que o estado da economia e a subida do desemprego denunciam a falência do “Make America great again”. A deriva autoritária do Presidente põe em causa outros níveis do poder, desacreditando os governadores dos estados por não serem capazes de atirar a matar, em último caso. Qual será o limite? Uma guerra civil?
A expressão é mesmo “Law and order” against “Law and order”, através desta deriva autoritária, que já se revelava mas a partir de ontem subiu um patamar mortal, e com o apoio de parte dos norte-americanos. Trump e os seus estão acossados, com a situação económica e de desemprego e com a pandemia, que não conseguem debelar nem atenuar e que lhes pode retirar – oxalá – a vitória nas eleições de novembro. Mas essa deriva já era muito evidente na ocupação de lugares na Justiça, na manipulação da verdade e na utilização da comunicação social. Ontem [segunda-feira 1 de junho] assistiu-se a uma terrível novidade: após já ter tentado colocar em causa o poder dos governadores e dos mayors no desconfinamento durante a pandemia Trump falou com eles – parece que na sequência de um telefonema com Vladimir Putin (!) – dizendo que eram moles se não atuassem de forma repressiva. Depois fez o discurso da autoridade (autoritarismo), em que a palavra “dominar” surgiu várias vezes, afirmando que chamava o Exército, o que penso não se poder fazer internamente para colocá-lo contra os norte-americanos. E, após dizer isso tudo numa conferência de imprensa em que não admitiu perguntas, caminhou até ao carro, para se dirigir em comitiva, com filha, genro e vice-presidente, até à Igreja de Washington, à porta da qual tirou uma foto de Bíblia na mão. A bispa já condenou esse aproveitamento da sua Igreja. A mensagem foi clara, para apoiantes e adversários: a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de “cruzada” armada. Em simultâneo as televisões mostravam, a polícia (não a de Washington, como já foi esclarecido), mas a federal, que de imediato varreram com brutalidade as ruas de manifestantes pacíficos, antes de vigorar o recolher obrigatório decidido pelas autoridades de DC [Distrito de Colúmbia, onde fica a capital dos EUA]. Tudo filmado e reportado por dezenas de jornalistas e fotógrafos. O que me faz dizer que a coreografia – à boa maneira fascista – foi toda minuciosamente organizada para os seus apoiantes, que continuam a existir, faça Trump o que faça. Não foi ele que disse que, mesmo se matasse alguém na rua, a sua popularidade não desapareceria? Penso que o termo guerra civil é muito forte e não deve ser gratuitamente usado, mas o que ele sempre fez e está a fazer é dividir os norte-americanos, para a guerra civil. Trump já começou a guerra civil, que agora militarizou e policiou. Ainda hoje [terça-feira 2 junho] uma amiga norte-americana revelou-me o tremendo medo em que está, pois as pessoas não estão preparadas para esta ascensão da violência.

Será tudo isto possível porque Trump vive isolado numa lógica de aparições para a TV e palavras de ordem e incitamento à violência via Twitter. De que pode valer-lhe o apoio da extrema-direita, dos supremacistas brancos, do Klu Klux Klan e de outros poderes subterrâneos?
O homem é um narcísico que criminosamente só surge na televisão para dizer disparates (que os seus apoiantes adoram) e mentiras e atiçar através do Twitter. Não disse ele, contra a ciência, que tinha remédio para o covid-19? Injetar detergente, expor-se a ultravioletas e tomar o medicamento contra a malária. É um especialista nas fake news, que, ao fazer equivaler verdade e mentira, eliminam qualquer ética. Trump é o verdadeiro populista demagogo, manipulador com frases simples e curtas, que ele cultiva com perícia – e está a ser aconselhado nisso –, as suas aparições como homem providencial. Não conheço suficientemente os EUA para poder dizer até que ponto a extrema-direita, KKK e outros mais subterrâneos são eficazes. Mas sabe-se que estão a potenciar a violência das manifestações, que Trump atribui exclusivamente ao movimento Antifa e a “anarquistas”, quando isso serve os seus propósitos de desestabilização e desordem. As aparições a favor de Trump e do desconfinamento de gente armada nos EUA banalizaram a extrema-direita, à maneira das S.A. na Alemanha nazi. Eles não pareciam muito numerosos, mas podem ter querido dar essa aparência.

Um ex-responsável por uma pasta da justiça escreve no “The Guardian” que Trump já não preside a nada, que se demitiu de administrar, que não trata da crise que tem em mãos, só incita à divisão, que declarou o poder central não responsável pelo combate à pandemia atirando o ónus das dificuldades para os governadores... Como analisa esta reação?
Li esse artigo e penso que tem toda a razão. Trump joga golfe, diz disparates e mentiras, mas não governa nem administra; nem ninguém por ele. Curiosamente, nunca se foi tão longe na opinião pública na condenação e crítica a Trump. Mas o problema é até esse, não serve de nada, pois quem lê “The Washington Post”, “The New York Times” e vê a CNN não são os mesmos que veem a Fox News. Mas os EUA ainda não parecem estar ao nível do Brasil e espero que as instituições democráticas, o Congresso, os mayors, os governadores, a comunicação social (que não está parada) e o aparelho de justiça – aquele ainda não tomado por Trump – reajam. Até já houve uma tentativa de impeachment que deu em nada!

Gostaria que identificasse as atitudes desta administração que correspondem ao modus operandi da extrema-direita. De fascistas? Há ressonâncias de outros tiranos? Ou de ditaduras, se for o caso.
Assim como nós conhecemos a História – aqueles que a conhecem – também a extrema-direita nacionalista, supremacista, racista e xenófoba a conhece. Grupos de extrema-direita paramilitares introduzem-se nas manifestações de protesto contra o crime perpetrado contra George Floyd para iniciar a violência que, segundo dizem, trará a “nova América”. Só não falo em fascismo, enquanto historiadora, pois a história não se repete e o fascismo fez parte de um determinado contexto histórico mundial, que não é o mesmo do dos anos 1920 e 1930. Mas, enquanto cidadã, não me repugna falar de fascismo, pois – mal ou bem – clarifica e caracteriza aquilo de que estamos a falar e produziu determinados resultados monstruosos. Desde que há escrita, sabemos que o ser humano não se modificou muito, desde o Egito antigo, Grécia e Roma. Sabemos o que é o poder e a tirania, e como funciona, das tragédias gregas a Shakespeare. Hoje [terça-feira 2 de junho], uma historiadora norte-americana afirmou que já esperava há muito o que se passa desde que Trump foi eleito. Nunca pensei que fosse atuar de forma democrática, atendendo aos seus antecedentes (nem Bolsonaro), apenas não sabia como iria atuar para acabar com a democracia. Temos de começar a falar assim: a democracia está em perigo e todos somos poucos para defendê-la. Primeiro, foram eleitos os candidatos a ditadores, depois ocuparam os lugares na Justiça, fizeram jornais e canais televisivos e usaram as redes sociais, muito adaptadas ao populismo. O que nos baralhou um pouco relativamente ao fascismo foi que estes candidatos não precisaram de ilegalizar e proibir partidos nem instaurar a censura. Dividiram tudo e todos, fizeram equivaler a verdade à mentira e diabolizaram os adversários políticos e as elites, erigindo-os como inimigos principais do “povo”. Há aspetos parecidos com o nazismo: a escolha de bodes expiatórios, a exploração da insegurança e dos medos da população, a banalização da violência e do racismo, bem como a transformação da ética e da justiça nos seus contrários. Hannah Arendt avisou que, na Alemanha nazi, foram raros os alemães que se ergueram contra o regime, a violência contra os “outros”, fossem adversários políticos ou raciais, porque é difícil usar o imperativo categórico kantiano e distinguir o bem do mal e agir em conformidade. E é sobretudo difícil quando o crime vem de “cima”. Só espero que nós hoje consigamos defender a democracia e a pandemia não é boa conselheira.


Publicada em https://irenepimentel.blogspot.com/2020/06/supremacismo-branco-e-populismo.html?spref=bl 03.06.2020 às 13h00