História.docs
Um blogue de Nazaré Oliveira para todos os que gostam de História.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
sexta-feira, 11 de abril de 2025
21 de abril de 1961: Os primeiros soldados portugueses partem para a guerra colonial
21 de abril de 1961: Os primeiros soldados partem para a guerra a bordo do Niassa
Neste dia, mais de 2.000 soldados rumavam a Luanda. Foram combater um
inimigo que não era o seu, por uma pátria que os transformou em carne para
canhão. Fotos de Fernando Mariano Cardeira.
Para Angola, rapidamente e em força, clamava
Salazar a 13 de abril de 1961, uma semana antes de partirem os primeiros
contingentes de tropas portuguesas: a 19 de abril, por via aérea e, a 21 de
abril, por via marítima.
Há exatamente 60 anos, mais de 2.000 soldados
embarcaram no Niassa, o primeiro paquete fretado para transporte de
militares e de material de guerra, por portaria de 4 de março de 1961. O Niassa zarpou
do cais de Santa Apolónia a 21 de janeiro, chegando a Luanda 10 dias mais
tarde, a 1 de maio, uma segunda-feira.
1961 e a anunciada queda do colonialismo português
Entre finais de 1960 e inícios de 1961, o mito
da pax imperial portuguesa é fortemente abalado. O impacto do
processo de independência do antigo Congo belga terá tido repercussões
consideráveis, sobretudo entre os bacongos do Norte de Angola, trazendo
expectativas de libertação e independência.
Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961
A revolta da Baixa de Cassange, uma região que, em
duas extensas zonas, se encosta ao Congo, tornar-se-ia, por sua vez, uma
espécie de ensaio geral para a guerra. Na Baixa de Cassange vigorava o regime
da cultura obrigatória do algodão. Os agricultores e as suas famílias tinham de
cultivar o algodão, em detrimento de culturas que assegurariam a sua
subsistência alimentar, e vender a sua produção à Cotonang. Esta companhia
estipulava preços miseráveis e ainda tinha poder para classificar como de 2ª o
algodão de 1ª. Na região grassava uma pobreza extrema e os camponeses eram
sujeitos a todo o tipo de violência e arbitrariedades. No final de 1960, os
camponeses começaram a parar a produção, a recusar pagar impostos e a
insurgirem-se contra a Cotonang e os colonos portugueses. A 4 de janeiro de
1961, negaram-se a voltar ao trabalho e queimaram as sementes distribuídas pela
companhia. A partir daí, deu-se o esmagamento militar da revolta. Entraram em
campo a 3ª e a 4ª Companhias de Caçadores e a Força Aérea. Várias sanzalas
foram totalmente dizimadas e muitos dos seus habitantes mortos.
O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola
por Diana Andringa
Entretanto, na madrugada de 4 de fevereiro, quando
a revolta do Cassange ainda não tinha sido contida, guerrilheiros africanos
atacaram, em Luanda, a casa de reclusão militar, a cadeia administrativa de São
Paulo e o Quartel da Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública. O
objetivo era libertar os presos políticos e arrecadar armamento. No dia
seguinte, no enterro de alguns soldados mortos, eclodem conflitos. A repressão
colonial é feroz. Perante as represálias, os guerrilheiros voltam a atacar a cadeia
de São Paulo e a Companhia Indígena a 11 de fevereiro.
15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola
Pouco mais de um mês depois, dá-se a sublevação do
15 de março, protagonizada pela UPA (União das Populações de Angola). Os
ataques foram fulminantes e a violência e ferocidade dos métodos utilizados
atrozes. Brancos, mestiços e alguns negros foram alvo da barbárie. Ao contrário
do que foi propalado, estes ataques não constituíram uma surpresa para as
forças portuguesas. Já tinham existido vários alertas da própria PIDE e das
autoridades administrativas no que respeita à iminência de um ataque. No entanto,
o Governo de Salazar nada fez. Ao terror negro, os colonos responderam com
terror branco, agravando o fosso racial de forma que se provou ser
irreversível. A vaga repressiva do regime salazarista vai atingir vários
religiosos e determinar a sua prisão, sob a acusação de incitar a revolta.
Entre eles, o cónego Manuel das Neves.
A nível interno, o ano de 1961 também trouxe alguns
revezes a António de Oliveira Salazar. O assalto ao paquete Santa Maria, a 22
de janeiro, conduzido por um alto dignitário do Estado Novo, Henrique Galvão,
expõe a vulnerabilidade do regime. A 13 de abril, o ditador português é
confrontado com uma tentativa de golpe de Estado por parte de homens como o
ministro da Defesa Nacional, general Júlio Botelho Moniz, o ministro do
Exército, coronel Almeida Fernandes, o subsecretário de Estado do Exército,
tenente-coronel Costa Gomes, e o Chefe do Estado-Maior-General (CEMGFA),
general Beleza Ferraz. Na noite desse mesmo dia, Salazar surge perante as
câmaras da televisão portuguesa para anunciar a remodelação governamental e
explicar porque assumia a pasta da Defesa: “se é precisa uma explicação para o
facto de assumir a pasta da Defesa Nacional [...] a explicação concretiza-se
numa palavra e essa é Angola [...] Andar rapidamente e em força é o objetivo
que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão [...] a fim de defender
Angola e com ela a integridade da Nação”. Uma semana depois, partem então os
primeiros contingentes de tropas portuguesas para Angola.
O ano de 1961 vai ficar ainda marcado por
acontecimentos como a publicação, em janeiro, do programa para a democratização
da República, pelo Oposição Democrática, em que se repudia qualquer
manifestação de imperialismo colonialista; o “salto” dos estudantes da Casa de
Estudantes do Império, que irão engrossar as fileiras dos Movimentos de
Libertação Nacional; e o desvio, a 10 de novembro, por parte de Palma Inácio e
Camilo Mortágua, do Super Constellation da TAP, do voo
Casablanca-Lisboa. Este foi o primeiro desvio de um avião comercial de que há
registo internacionalmente. A ação, que ficou conhecida como a “Operação Vagô”,
incluiu o lançamento de 100 mil panfletos sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja
e Faro.
por Fernando Rosas
A nível internacional, a 15 de março, é aprovada uma moção do Conselho de Segurança da ONU a condenar a situação em Angola, votada pelos Estados Unidos e pela União Soviética, pela primeira vez; e a 4 de abril é aprovada uma moção a favor da autodeterminação de Angola pela Assembleia Geral da ONU. Neste mês é ainda instituído pela ONU um Subcomité dos Cinco, a fim de investigar a situação relacionada com os acontecimentos em Angola. A 1 de setembro tem início a I Conferência Plenária dos Países Não Alinhados em Belgrado, que apela à ajuda internacional do povo angolano, e a 27 de novembro é criado, no seio da ONU, o Comité da Descolonização. O final do ano também não trouxe boas novidades a Salazar, com a apresentação, a 19 de dezembro, da rendição das tropas portuguesas ao comando indiano. E Goa foi o princípio do fim.
Uma Guerra injusta, imoral, maldita
Em 1961, embarcaram 33 mil homens, os primeiros dos
800 mil enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e
Moçambique. Até à Revolução de 1974, mais de 90 por cento da carga e de 80 por
cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra foram transportados para as
ex-colónias por via marítima.
Os paquetes mais utilizados para o efeito foram
o Vera Cruz, que realizou o maior número de viagens, o Niassa,
o Lima, o Império e o Uíje. Em 1961,
nove paquetes em missão militar realizaram 19 viagens com destino aos palcos da
Guerra Colonial. O número de viagens aumentou para 27 em 1963 e para 33 em
1967. O Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, passou a ser local
privilegiado de escoamento de tropas e colonos.
Mas os soldados, na sua grande maioria, eram pouco
mais do que rapazes. Muitos apenas conheciam as aldeias onde tinham nascido e
os quartéis onde fizeram a recruta. E mal sabiam ler e escrever, ou nem isso.
Não tinham qualquer ideia do que os esperava em Angola. Os primeiros
contingentes foram aclamados como heróis à chegada a Luanda, mas estavam mal
preparados, não estavam devidamente equipados e nem sequer sabiam bem o que
estavam ali a fazer. Médicos militares no terreno alertavam para o alarmante estado
de subnutrição e desidratação dos soldados e a inexistência de cuidados de
saúde adequados.
Os militares portugueses enviados para os palcos da Guerra Colonial em Angola, Guiné e Moçambique ocuparam, pilharam, queimaram aldeias, torturaram, mataram. São vários os relatos de agressões sexuais contra as mulheres africanas e, inclusive, de violações em grupo. O relato do massacre de Wiryamu, Chawola e Juwau (1972), no distrito de Tete, em Moçambique, levado a cabo por tropas coloniais portuguesas e pela PIDE-DGS, dá-nos conta das atrocidades, dos crimes hediondos cometidos durante a Guerra Colonial, com o extermínio de comunidades inteiras – incluindo crianças, mulheres, idosos – com requintes de uma perversidade sem limites.
Os soldados portugueses, por sua vez, serviram como
verdadeira “carne para canhão”.
Estilhaços de uma guerra maldita
Os soldados que voltaram trouxeram as memórias de
matar, ver morrer, de morrer aos poucos. Os estropiados foram rapidamente
escondidos pelo regime fascista, que não queria ver divulgados os horrores da
guerra. Uns, atirados para o Depósito de Indisponíveis, na Graça, em Lisboa.
Outros, reencaminhados para as suas aldeias, esquecidos, sem qualquer
possibilidade de recuperarem as suas anteriores ocupações.
Às mulheres portuguesas foi atribuído o papel de
apoiar o esforço de guerra: parir guerreiros para a defesa do “Império” e
apoiá-los, bem como aos maridos, irmãos e todos os homens enviados para as
ex-colónias; apoiar na assistência aos feridos e desprotegidos; trabalhar nas
fábricas de munições. Foi-lhes imposto um sofrimento silencioso, porque ir para
a guerra só podia ser motivo de orgulho. E herdaram o stress pós-traumático
daqueles que de lá vieram.
Lá, as mulheres africanas guardam as cicatrizes das
agressões sexuais e cuidam dos filhos deixados pelos soldados portugueses,
nunca reconhecidos pelos pais e pelo Estado Português.
As feridas abertas da Guerra Colonial
por Mariana Carneiro
A Guerra Colonial durou mais do dobro da Segunda
Guerra Mundial e fez milhares de mortos portugueses e africanos. Este conflito
representou, em termos humanos, um esforço cinco vezes superior ao que os EUA
mobilizaram para o Vietname. Apenas entre o contingente português,
contabilizaram-se 8.831 mortos, 30 mil feridos, 4.500 mutilados, 14 mil
deficientes físicos. Mais de 100 mil diagnosticados com perturbação de stress
pós-traumático.
A devastação causada pelo colonialismo português
nos territórios das ex-colónias tem ainda repercussões profundas, ao ter
comprometido abruptamente o desenvolvimento económico, social, cultural das
suas sociedades, espoliado os seus bens e os seus recursos, escravizado,
violentado e tentado aniquilar a identidade e a cultura dos seus povos.
FONTES:
AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos Gomes.
Guerra Colonial. Edição: Editorial Notícias, abril de 2000
CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena. As Voltas do
Passado - A Guerra Colonial e as Lutas de Libertação. Editor: Tinta da China,
junho de 2018
DHADA, Mustafah. O Massacre Português de Wiriamu -
Moçambique, 1972. Edição: Tinta da China, outubro de 2016.
GOMES, Catarina. Furriel não é Nome de Pai. Lisboa:
Tinta da China, Edição:05-2018.
MATEUS, Dalila Cabrita. Angola 61
- Guerra Colonial: Causas e Consequências. Edição: Texto Editores,
janeiro de 2011.
RIBEIRO, Margarida Calafate. África no
Feminino: as Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial. Porto: Afrontamento,
2007.
ROSAS, Fernando. História a História – África.
Edição: Tinta da China, março de 2018 ‧ ISBN: 9789896714215
Arquivo Digital do Centro de Documentação 25 de
Abril da Universidade de Coimbra
Baixa de Kasanje – a revolta camponesa de 1961,
artigo de Aida Freudenthal, publicado no Esquerda.net
15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola,
artigo de Maria da Conceição Neto, publicado no Esquerda.net
O 4 de fevereiro de 1961 e a guerra colonial em Angola,
artigo de Diana Andringa, publicado no Esquerda.net
Goa, ou o princípio do fim, artigo de Fernando
Rosas, publicado no Esquerda.net
Wiriamu: O massacre esquecido, artigo de Carmo
Vicente, publicado no Esquerda.net
Estilhaços de uma guerra maldita, artigo de
Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net
As feridas abertas da Guerra Colonial, artigo
de Mariana Carneiro, publicado no Esquerda.net
Artigo partilhado na íntegra e disponível em https://www.esquerda.net/artigo/21-de-abril-de-1961-os-primeiros-soldados-partem-para-guerra-bordo-do-niassa/73984
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Trabalho escravo nos arrozais de Alcácer do Sal durante o salazarismo
A estranha gente dos arrozais
Um excelente artigo publicado no blogue O SAL DA HISTÓRIA.
Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.
Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.
Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.
As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.
Poucos eram os momentos
de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante
que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável
do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente
relatavam um pouco das suas sofridas existências.
Estas mondinas, como por
aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras
tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto,
amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.
A “malta” e a gente de
Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de
partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que
definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais
conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e
contribuía para que, por norma, morressem cedo.
Os de fora vinham em
setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da
terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.
No campo, os do Alentejo
tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a
cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à
hora da refeição (na imagem).
Para alimentar os da
“malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo
circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.
Apesar de homens e
mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio
de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com
um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização
ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um
casal no rancho.
Hoje, o arroz está
totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir
drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também
nos serviços. Os migrantes são outros.
À margem
Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de
encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais
próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes
tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.
Diferente do tradicional cante, é uma moda de
improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.
Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na
taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era
ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode
ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.
Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os
namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.
Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti
uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e
especial enfoque no Ladrão do Sado.
Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo
dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que
ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles
trabalhadores que pouco ou nada tinham.
É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos,
pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos
para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes
seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas
raízes peculiares.
Mas isso é outra
história…
Agradeço a Maria Antónia
Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.
Fontes
Diário de Lisboa, 01.10.1945,
03.10.1945, 04.10.1945.
António José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado - YouTube
Cortesia de Miguel Ângelo
Catarino Vaquinhas
Município e Direcção Regional da Cultura apostados em
preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)
Isabel Castro Henriques, Os
pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem
africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer
do Sal
AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-001
AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-002
AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-004
AHMALCS-CMALCS-FOTOGRAFIAS-01-07-005
PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0142
PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0146
PT_AHMALCS_CMALCS_FOTOGRAFIAS_02_01_0115
Disponível em https://osaldahistoria.blogs.sapo.pt/a-estranha-gente-dos-arrozais-12377
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
Orçamento do Estado
Introdução
A Assembleia da República (AR)
desempenha um papel central e indispensável na definição e execução das
prioridades e desafios consignados no Orçamento do Estado (OE). Este processo é
fundamental, não apenas para a gestão financeira do país, mas também para
garantir a transparência, a responsabilização e a democracia participativa. O
OE é o documento que contém a definição das receitas e despesas previstas para
o ano seguinte, o que permite prever como e onde os recursos públicos serão
aplicados. A intervenção parlamentar é crucial para assegurar que as decisões
relativas à alocação daqueles recursos refletem os efetivos interesses e
necessidades da população.
Intervenção Parlamentar e
Democracia
A intervenção da AR no
processo orçamental é um exercício de democracia e responsabilidade, pois
permite aos representantes da população, e por si eleitos, debater, ajustar e
validar as propostas do Governo, garantindo assim que o OE reflete uma gama alargada
de interesses e necessidades sociais.
Transparência e
Prestação de Contas
A promoção da transparência é
um dos principais benefícios da intervenção parlamentar. O debate público
gerado e as audições realizadas, designadamente com especialistas, como o
Tribunal de Contas (TdC), o Conselho Económico e Social (CES) e o Conselho de
Finanças Públicas (CFP), permitem um escrutínio detalhado das propostas
orçamentais apresentadas. Desta forma, são reveladas as suas implicações
económicas e sociais, o que é essencial em termos de prestação de contas, pois,
ao fornecerem uma visão técnica e independente sobre o Orçamento, permitem
assegurar que as decisões financeiras são fundamentadas, justificadas e
compreendidas pelos cidadãos.
Contudo, as audições com os
Ministros são geralmente as mais divulgadas pela comunicação social porque, ao
permitirem que os Deputados questionem os Ministros acerca das opções
políticas, das prioridades orçamentais e da gestão dos recursos públicos, representam
o momento em que a Assembleia a República exerce um escrutínio político direto
sobre as decisões governamentais. Como resultado, é ampliada a noção de
transparência fornecida pela avaliação técnica realizada pelos especialistas.
Por último, importa assinalar
que a transparência é uma das principais ferramentas de defesa contra a
corrupção e a má gestão e promove a confiança pública nas instituições.
Participação Cívica
A participação cívica
promovida pela discussão do OE na Assembleia da República permite aos
Deputados, enquanto representantes dos cidadãos, influenciar o Orçamento, o que
transforma o processo orçamental num mecanismo de participação democrática. Por
sua vez, esta participação é ampliada pelas audições públicas e pelos
contributos apresentados pelos diversos setores da sociedade civil, que podem
expressar as suas preocupações e sugestões. O diálogo entre os cidadãos e os
seus representantes é indispensável a uma democracia saudável e funcional.
A Definição do Orçamento do
Estado - Desafios
De entre os desafios que o
processo de definição e execução do OE coloca, destacam-se a necessidade de
conciliar diferentes interesses, por vezes divergentes, a gestão das limitações
financeiras e a adaptação a contextos económicos em mudança.
Conciliação de
interesses divergentes
A AR é composta por Deputados
de diferentes partidos, cada qual com as suas próprias ideologias, prioridades
e agendas políticas, pelo que a conciliação destes interesses, no sentido de
chegar a consenso sobre o OE, é um grande desafio. As negociações e a assunção
de compromissos são parte integrante deste processo, exigindo habilidades de
diálogo e cooperação entre os diferentes grupos parlamentares. Esta diversidade
de opiniões é uma fonte de complexidade para o processo orçamental, mas também
uma das suas forças.
Limitações financeiras
A gestão das limitações e
restrições orçamentais de natureza financeira constituí também um enorme
desafio. O OE deve equilibrar as necessidades e aspirações da população com a
realidade dos recursos financeiros disponíveis. A disciplina orçamental é crucial
para evitar défices excessivos e para garantir a sustentabilidade financeira do
Estado a longo prazo, equilíbrio geralmente difícil de alcançar, sobretudo em
contextos de crise económica ou de elevada dívida pública. Nestes momentos,
embora se possa considerar que a austeridade fiscal seja necessária para
correção dos desvios, todos os envolvidos no processo sabem que pode gerar
significativas tensões sociais e políticas.
Contextos económicos em
mutação
A economia é dinâmica e
sujeita a rápidas mudanças, que podem afetar as previsões e os planos
estabelecidos no OE, pelo que a Assembleia da República deve estar preparada
para promover o ajustamento do Orçamento em resposta às realidades económicas
que o exijam, tais como recessões, crises financeiras ou mudanças nas políticas
internacionais. Esta flexibilidade é determinante para a resiliência económica
de Portugal. Além disso, as incertezas globais, como as flutuações nos mercados
financeiros, as crises geopolíticas e as mudanças climáticas, colocam desafios
adicionais à gestão orçamental.
A Execução do Orçamento do
Estado - Impactos
Depois da aprovação do OE, é
fundamental que a sua execução, uma responsabilidade do Governo, seja um
processo acompanhado e monitorizado pela AR, na medida em que a eficácia com
que o Orçamento é implementado por parte do Executivo governamental tem um impacto
direto na vida dos cidadãos e na economia do país.
Monitorização e avaliação
As comissões parlamentares têm
o papel de acompanhar a implementação das políticas orçamentais, solicitando
informações e esclarecimentos ao Governo quando necessário. A avaliação
periódica da execução orçamental e a monitorização permanente e contínua da
ação do Governo por parte da Assembleia da República, garantem que este está a
seguir as diretrizes aprovadas em OE, e permitem intervenções de ajustamento
rápidas, caso se identifiquem desvios ou áreas passíveis de melhoria.
Impacto socioeconómico
A forma como a execução do OE
é conduzida pelo Governo tem impactos sociais e económicos profundos. As
políticas de despesa pública, como investimentos em saúde, educação,
infraestruturas e segurança social, são fundamentais ao bem-estar dos cidadãos
e ao desenvolvimento do país. A intervenção parlamentar, de carácter regulador,
visa assegurar a execução eficaz do OE, garantindo que essas políticas são
implementadas de acordo com as prioridades estabelecidas. Esta intervenção
parlamentar contribui assim para uma distribuição equitativa dos recursos, para
a redução das desigualdades sociais, para a promoção da inclusão e para o
fomento do crescimento económico sustentável.
A Intervenção Parlamentar -
Casos
A importância da intervenção
da AR no processo orçamental pode ser ilustrada por exemplos históricos, que
demonstram como o Parlamento pode influenciar significativamente a definição e
execução do OE e os seus impactos.
O Orçamento de 2014 e a
austeridade
Um exemplo relevante é o do OE
de 2014, durante o período de austeridade imposto pelo programa de ajustamento
económico e financeiro. A Assembleia da República enfrentou o desafio de
aprovar um Orçamento que incluía medidas de contenção da despesa pública e
privada, bem como aumentos de impostos, num contexto de forte oposição social e
política. Aqui, destacou-se a enorme dificuldade de equilibrar as exigências de
sustentabilidade financeira com a necessidade de proteger os mais vulneráveis,
mantendo a coesão social.
O Orçamento de 2020 e a
resposta à pandemia
O OE de 2020 é outro notável
exemplo. Este Orçamento teve de ser rapidamente ajustado para responder à
emergência nacional e global da pandemia de COVID-19. Neste contexto, a AR
aprovou várias medidas extraordinárias, incluindo apoios às empresas e aos trabalhadores,
o reforço do sistema de saúde e o aumento das despesas de apoio social. Desta
forma, o Parlamento demonstrou a capacidade de responder eficazmente a crises
imprevistas e promover o ajustamento do Orçamento às necessidades urgentes do
país.
Conclusão
A intervenção da Assembleia da
República na definição e execução do Orçamento do Estado é, em si mesma, um
pilar da democracia portuguesa, na medida em que se constitui como garante de
que o Orçamento reflete as necessidades e prioridades partilhadas pela
população, ao promover a transparência e a prestação de contas, ao enfrentar os
desafios da gestão financeira pública e adaptação económica a contextos
mutáveis e ao assegurar que as decisões financeiras são tomadas de forma
transparente, responsável e inclusiva.
Por intermédio do debate
democrático e da monitorização rigorosa, o Parlamento assegura que as políticas
orçamentais contribuem para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar dos
cidadãos.
A intervenção parlamentar no
OE é uma expressão concreta da soberania popular e um mecanismo essencial para
a governação responsável e eficaz de Portugal. O equilíbrio entre as
necessidades de gestão rigorosa e disciplinada dos recursos públicos e a proteção
dos interesses e direitos dos cidadãos é a essência de uma democracia saudável
e plural.
Artur Filipe Lima
In Orçamento do Estado 2025 | ComunicAR - Boletim da Assembleia da República | outubro 2024
terça-feira, 17 de setembro de 2024
A Revolta dos Marinheiros de 1936 (Portugal)
"Os Marinheiros que participaram na revolta de 1936 são transportados para o porto para serem deportados para o campo prisão do Tarrafal em Cabo Verde" © ANTT
#nestedia 8 de setembro de 1936, um grupo de marinheiros dos navios Bartolomeu Dias, Dão e Afonso de Albuquerque decidiram enfrentar a Ditadura com a convicção da vitória de um golpe armado contra o fascismo. O levantamento militar foi o resultado de um forte trabalho de agitação e mobilização do descontentamento existente entre os marinheiros, organizado pela Organização Revolucionária da Armada, estrutura que unia as células do Partido Comunista Português na Marinha de Guerra, com o objetivo assaltar as prisões dos Açores, libertar os companheiros presos e constituir aí um Governo Provisório que exigisse a queda de Salazar.
O governo teve conhecimento dos preparativos e, ao fim de algumas horas,
controlou a revolta, ordenando a intervenção da aviação contra os navios
sublevados. Salazar ordenou o bombardeamento contra os navios sublevados, a
partir da artilharia de costa, e a perseguição dos revoltosos, tendo resultado
em 12 mortos. 208 Marinheiros presos, 82 condenados, 44 enviados para a
fortaleza de Angra do Heroísmo, 4 presos no Forte de Peniche. Destes, 34
integraram parte do primeiro contingente dos 150 primeiros presos políticos
enviados para o campo de concentração do Tarrafal, em outubro de 1936.
As penas de prisão iam de 16 a 20 anos, a maioria dos presos saiu apenas quando
o Tarrafal foi encerrado, em 1954, e 5 destes marinheiros morreram no «campo da
morte lenta» do Tarrafal.
Imagens:
Fichas Prisionais dos marinheiros revoltosos que morreram no Tarrafal © ANTT
Cândido Alves Barja
Francisco José Pereira
Joaquim Marreiros
Jacinto de Melo Faria Vilaça
Henrique Vale Domingues Fernandes
in https://www.museudoaljube.pt/2024/09/08/revolta-dos-marinheiros-de-1936/, consultada dia 17 de setembro de 2024.
domingo, 29 de janeiro de 2023
O liberalismo: a implantação do liberalismo em Portugal, antecedentes e conjuntura (1807-1820) - VÍDEO E TEXTO
A Revolução Americana - VÍDEO
domingo, 24 de julho de 2022
Supremacismo branco e populismo nacionalista de extrema-direita estão a ser promovidos por Donald Trump
A mensagem de Donald Trump foi clara para os seus apoiantes e adversários quando fez “a ameaça simbólica de estar a enveredar para uma situação de ‘cruzada’ armada”, diz ao Expresso a historiadora Irene Flunser Pimentel - CRISTINA PERES
O assassínio de George Floyd por um polícia em Mineápolis expôs ainda mais a deriva autoritária do Presidente dos Estados Unidos. A América está na rua há uma semana, em protestos, e Donald Trump ameaça enviar o exército para alcançar o que considera que nem a polícia nem a Guarda Nacional conseguiram ainda: repor a ordem.
Para ajudar a ler a
tradição de violência racista que se reconhece nos Estados Unidos e a
ultrapassagem de limites que seria impensável até há pouco, o Expresso pediu à
historiadora Irene Flunser Pimentel que comentasse a ameaça à democracia a que
se assiste.
Doutorada em História
Institucional e Política Contemporânea, Irene Pimentel é investigadora do
Instituto de História Contemporânea da Nova-Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas. É co-autora e autora de extensa bibliografia, que inclui “A
História da PIDE” (2007), “Espiões em Portugal durante a II Guerra
Mundial” (2013) e “História da Oposição à Ditadura em
Portugal” (2014). No passado dia 28 de maio, deu uma aula online sobre o
golpe que, naquele mesmo dia de 1926, fez ascender o fascismo em Portugal.
Numa série de artigos de
opinião em jornais consagrados lê-se que o caso George Floyd decorre de uma
tradição de violência nos EUA, mas que desta vez se ultrapassou uma fronteira.
Concorda?
Subjetivamente, diria que esta fronteira foi ultrapassada devido a ter
sido one too many e porque estamos no século XXI e Obama foi
Presidente dos Estados Unidos. Mas, na realidade, penso haver uma razão muito
objetiva: o assassínio foi filmado, durou muitos minutos, foi precedido por
tortura e à vista de muitos, que chamaram a atenção para o que estava a
acontecer e para a súplica de George Floyd, segundo o qual “não podia
respirar”.
Penso ter funcionado a
situação de empatia (colocar-se na posição da vítima), embora, desgraçadamente,
ninguém tenha conseguido salvar George Floyd, um ser humano, com nome e
identidade. Devo dizer que fiquei muito revoltada, mas não consegui partilhar aquele
vídeo que retratava uma situação limite de crueldade desumana e infamante.
Manifestei-me sobre o caso, mas sem mostrar a situação de sofrimento e morte.
Depois, também foi terrível a atitude dos “colegas” polícias, de total
cumplicidade e indiferença pelo que o assassino estava a fazer, quando a
obrigação de qualquer ser humano é salvar uma pessoa em perigo. O que todos
sentimos, de forma impotente, é que deveríamos, e os que assistiam deveriam ter
reagido fisicamente contra o agressor. Não sei o que teria acontecido em
Portugal, onde por vezes há também violência policial e racista. Mas sei que
nos EUA até se aprende a não responder ou reagir mal à polícia, que está armada
até aos dentes.
O joelho no pescoço, a
subjugação prolongada pelo polícia pareciam afirmar “faço o que eu quero”,
uma clara “peça” de informação dirigida aos defensores da supremacia
branca, que devem todos ter entendido que “é tudo nosso”.
Também me ocorreu precisamente isso. Lembramo-nos de algo que hoje – felizmente
– também já é criminalizado se for feito a animais (aqui ainda temos as
touradas). Também nos fez recordar a escravatura e o colonialismo, até porque –
ainda não o disse, mas é relevante – a vítima é um afro-americano e o algoz um
branco, pelos vistos cioso de expressar o que pensa ser a sua supremacia (de
assassino). Penso que o supremacismo branco, o populismo nacionalista de
extrema-direita tem feito rapidamente um caminho que era impensável há uns
anos, pois é potenciado pelo próprio Presidente. O que tudo também revela é que
o mal, o racismo, o supremacismo estão banalizados e normalizados, neste século
XXI, e são incentivados a partir de cima, numa sociedade e numa situação
política que guarda aspectos democráticos.
Ou seja, estamos
baralhados?
Estamos baralhados, mas não deveríamos estar, com a possibilidade de crimes e a
falência da ética, escassos 80 anos históricos após o Holocausto e a II Guerra
Mundial. E com aspetos semelhantes e reconhecíveis com os anos 20 e 30 do
século XX.
Donald Trump apoia-se no
último slogan da sua campanha de 2016 ainda por esgotar, “Law
& Order”, dado que o estado da economia e a subida do desemprego
denunciam a falência do “Make America great again”. A deriva autoritária
do Presidente põe em causa outros níveis do poder, desacreditando os
governadores dos estados por não serem capazes de atirar a matar, em último
caso. Qual será o limite? Uma guerra civil?
A expressão é mesmo “Law and order” against “Law and
order”, através desta deriva autoritária, que já se revelava mas a partir
de ontem subiu um patamar mortal, e com o apoio de parte dos norte-americanos.
Trump e os seus estão acossados, com a situação económica e de desemprego e com
a pandemia, que não conseguem debelar nem atenuar e que lhes pode retirar –
oxalá – a vitória nas eleições de novembro. Mas essa deriva já era muito
evidente na ocupação de lugares na Justiça, na manipulação da verdade e na
utilização da comunicação social. Ontem [segunda-feira 1 de junho] assistiu-se
a uma terrível novidade: após já ter tentado colocar em causa o poder dos
governadores e dos mayors no desconfinamento durante a
pandemia Trump falou com eles – parece que na sequência de um telefonema com
Vladimir Putin (!) – dizendo que eram moles se não atuassem de forma
repressiva. Depois fez o discurso da autoridade (autoritarismo), em que a
palavra “dominar” surgiu várias vezes, afirmando que chamava o Exército, o que
penso não se poder fazer internamente para colocá-lo contra os
norte-americanos. E, após dizer isso tudo numa conferência de imprensa em que
não admitiu perguntas, caminhou até ao carro, para se dirigir em comitiva, com
filha, genro e vice-presidente, até à Igreja de Washington, à porta da qual
tirou uma foto de Bíblia na mão. A bispa já condenou esse aproveitamento da sua
Igreja. A mensagem foi clara, para apoiantes e adversários: a ameaça simbólica
de estar a enveredar para uma situação de “cruzada” armada. Em simultâneo as
televisões mostravam, a polícia (não a de Washington, como já foi esclarecido),
mas a federal, que de imediato varreram com brutalidade as ruas de manifestantes
pacíficos, antes de vigorar o recolher obrigatório decidido pelas autoridades
de DC [Distrito de Colúmbia, onde fica a capital dos EUA]. Tudo filmado e
reportado por dezenas de jornalistas e fotógrafos. O que me faz dizer que a
coreografia – à boa maneira fascista – foi toda minuciosamente organizada para
os seus apoiantes, que continuam a existir, faça Trump o que faça. Não foi ele
que disse que, mesmo se matasse alguém na rua, a sua popularidade não
desapareceria? Penso que o termo guerra civil é muito forte e não deve ser
gratuitamente usado, mas o que ele sempre fez e está a fazer é dividir os
norte-americanos, para a guerra civil. Trump já começou a guerra civil, que
agora militarizou e policiou. Ainda hoje [terça-feira 2 junho] uma amiga
norte-americana revelou-me o tremendo medo em que está, pois as pessoas não
estão preparadas para esta ascensão da violência.
Será tudo isto possível
porque Trump vive isolado numa lógica de aparições para a TV e palavras de
ordem e incitamento à violência via Twitter. De que pode valer-lhe o apoio da
extrema-direita, dos supremacistas brancos, do Klu Klux Klan e de outros poderes
subterrâneos?
O homem é um narcísico que criminosamente só surge na televisão para dizer
disparates (que os seus apoiantes adoram) e mentiras e atiçar através do
Twitter. Não disse ele, contra a ciência, que tinha remédio para o covid-19?
Injetar detergente, expor-se a ultravioletas e tomar o medicamento contra a
malária. É um especialista nas fake news, que, ao fazer equivaler
verdade e mentira, eliminam qualquer ética. Trump é o verdadeiro populista
demagogo, manipulador com frases simples e curtas, que ele cultiva com perícia
– e está a ser aconselhado nisso –, as suas aparições como homem providencial.
Não conheço suficientemente os EUA para poder dizer até que ponto a
extrema-direita, KKK e outros mais subterrâneos são eficazes. Mas sabe-se que
estão a potenciar a violência das manifestações, que Trump atribui
exclusivamente ao movimento Antifa e a “anarquistas”, quando isso serve os seus
propósitos de desestabilização e desordem. As aparições a favor de Trump e do
desconfinamento de gente armada nos EUA banalizaram a extrema-direita, à
maneira das S.A. na Alemanha nazi. Eles não pareciam muito numerosos, mas podem
ter querido dar essa aparência.
Um ex-responsável por uma pasta da justiça escreve
no “The Guardian” que Trump já não preside a nada, que se demitiu de
administrar, que não trata da crise que tem em mãos, só incita à divisão, que
declarou o poder central não responsável pelo combate à pandemia atirando o
ónus das dificuldades para os governadores... Como analisa esta reação?
Li esse artigo e penso que tem toda a razão. Trump joga golfe, diz disparates e
mentiras, mas não governa nem administra; nem ninguém por ele. Curiosamente,
nunca se foi tão longe na opinião pública na condenação e crítica a Trump. Mas
o problema é até esse, não serve de nada, pois quem lê “The Washington Post”,
“The New York Times” e vê a CNN não são os mesmos que veem a Fox News. Mas os
EUA ainda não parecem estar ao nível do Brasil e espero que as instituições
democráticas, o Congresso, os mayors, os governadores, a
comunicação social (que não está parada) e o aparelho de justiça – aquele ainda
não tomado por Trump – reajam. Até já houve uma tentativa de impeachment que
deu em nada!
Gostaria que identificasse as atitudes desta
administração que correspondem ao modus operandi da
extrema-direita. De fascistas? Há ressonâncias de outros tiranos? Ou de
ditaduras, se for o caso.
Assim como nós conhecemos a História – aqueles que a conhecem – também a
extrema-direita nacionalista, supremacista, racista e xenófoba a conhece.
Grupos de extrema-direita paramilitares introduzem-se nas manifestações de
protesto contra o crime perpetrado contra George Floyd para iniciar a violência
que, segundo dizem, trará a “nova América”. Só não falo em fascismo, enquanto
historiadora, pois a história não se repete e o fascismo fez parte de um
determinado contexto histórico mundial, que não é o mesmo do dos anos 1920 e
1930. Mas, enquanto cidadã, não me repugna falar de fascismo, pois – mal ou bem
– clarifica e caracteriza aquilo de que estamos a falar e produziu determinados
resultados monstruosos. Desde que há escrita, sabemos que o ser humano não se
modificou muito, desde o Egito antigo, Grécia e Roma. Sabemos o que é o poder e
a tirania, e como funciona, das tragédias gregas a Shakespeare. Hoje
[terça-feira 2 de junho], uma historiadora norte-americana afirmou que já
esperava há muito o que se passa desde que Trump foi eleito. Nunca pensei que
fosse atuar de forma democrática, atendendo aos seus antecedentes (nem
Bolsonaro), apenas não sabia como iria atuar para acabar com a democracia.
Temos de começar a falar assim: a democracia está em perigo e todos somos
poucos para defendê-la. Primeiro, foram eleitos os candidatos a ditadores,
depois ocuparam os lugares na Justiça, fizeram jornais e canais televisivos e
usaram as redes sociais, muito adaptadas ao populismo. O que nos baralhou um
pouco relativamente ao fascismo foi que estes candidatos não precisaram de
ilegalizar e proibir partidos nem instaurar a censura. Dividiram tudo e todos,
fizeram equivaler a verdade à mentira e diabolizaram os adversários políticos e
as elites, erigindo-os como inimigos principais do “povo”. Há aspetos parecidos
com o nazismo: a escolha de bodes expiatórios, a exploração da insegurança e
dos medos da população, a banalização da violência e do racismo, bem como a
transformação da ética e da justiça nos seus contrários. Hannah Arendt avisou
que, na Alemanha nazi, foram raros os alemães que se ergueram contra o regime,
a violência contra os “outros”, fossem adversários políticos ou raciais, porque
é difícil usar o imperativo categórico kantiano e distinguir o bem do mal e agir
em conformidade. E é sobretudo difícil quando o crime vem de “cima”. Só espero
que nós hoje consigamos defender a democracia e a pandemia não é boa
conselheira.