Foi numa
quinta-feira, 17 de Abril, que em Coimbra, quando da inauguração do Edifício
das Matemáticas pelo almirante Thomaz, teve lugar o episódio que deu início à
“crise de 69”. Falo dessa etapa da luta estudantil que marcou a vida da cidade
e da sua Universidade, ajudando a ampliar a base social de rejeição do regime
e, de certa forma, integrando as circunstâncias que conduziriam ao seu derrube.
Os factos, bem conhecidos, não ocorreram por acaso. Resultaram de uma
importante mudança que começara a ocorrer no meio estudantil universitário
português a partir da viragem para a década de 1960 e tivera já um primeiro
momento crítico em Lisboa no ano de 1962.
Ao contrário
do que acontecera nas décadas anteriores, o associativismo estudantil, em
consonância com uma tendência gradual de parte importante da sociedade
portuguesa para se afastar do regime, começava a deter uma componente
crescentemente autonomista e reivindicativa. A esta não era alheio o rápido
crescimento da própria população estudantil, agora com um número cada vez maior
de alunos provenientes da classe média, uma presença também cada vez mais
importante de mulheres (na altura da “crise” rondavam já os 50%) e uma
crescente imersão na nova e pujante cultura juvenil internacional dos anos
sessenta.
Em Abril de
1969, em Coimbra, este processo começou a agudizar-se, não apenas no que
respeitou à posição da larguíssima maioria dos alunos, mas também ao impacto dos
acontecimentos verificados na vida interna da própria Universidade e na
situação política do país, uma vez que não ficaram confinados ao meio
estudantil e à cidade. O movimento centrou-se então em protestos e
reivindicações relacionadas com a democratização do ensino, bem como com a
liberdade de associação e de expressão. Foi, no entanto, a atitude intolerante
e repressiva do governo que em boa parte ampliou o seu alcance, levando até
muitos estudantes não politizados a deslocar-se para o lado da oposição ao
regime.
No conjunto,
esse movimento, surgido junto de um setor social que representava ainda uma
elite da qual o próprio regime não podia prescindir, e dentro daquela que era a
universidade mais antiga e prestigiada do país, tornou público um processo de
contestação das autoridades que, a par da movimentação de outros setores, iria
servir de exemplo e motivação para o conjunto da sociedade. Ao mesmo tempo,
muitos dos dirigentes e ativistas estudantis, alguns dos quais em breve
concluiriam os seus cursos e seguiriam para as suas carreiras profissionais ou
para as forças armadas, tendo os homens como destino inevitável os teatros de
guerra em África, sendo formados nessa “escola de oposição” efervescente e
diversa que foi a crise coimbrã, ajudaram, a lançar e a propagar uma opinião
pública crítica que estimulou o fim do regime.
Note-se,
porém, que foi depois, entre 1971 e 1974, que nas três academias do país o
movimento estudantil mais se politizou e extremou, perdendo a dimensão
essencialmente associativista, em parte “reformista”, que ainda detinha em
1969, e ganhando, com a entrada em cena de setores políticos mais radicalizados
– minoritários, mas em crescimento e muito combativos – e com alguma influência
diferida do Maio de 1968, um conteúdo abertamente insurreto. Incorporando como
essencial, aliás, o que ainda não acontecera durante a “crise”, a luta contra a
guerra colonial, uma ligação mais objetiva ao movimento operário e popular, e a
defesa declarada da queda do regime. Não foi por acaso que logo em Fevereiro de
1971 o governo fechou compulsivamente a AAC. E que a vigilância, a detenção e a
tortura de estudantes pela PIDE se ampliou muitíssimo.
A “crise de
692 foi, sem dúvida, um importante momento simbólico e de viragem, que a
comunidade estudantil de Coimbra reconhece hoje como parte da sua própria
história e tradição. O que não significa, porém, que os atuais alunos a
reconheçam na sua complexidade e verdadeiro impacto. Geralmente é lembrada num
tom algo celebratório, talvez demasiado centrado em alguns protagonistas e
episódios, o que dilui o seu caráter de instante de afirmação continuada e
coletiva da capacidade reivindicativa dos estudantes e da transformação do
espaço universitário em teatro da mudança política, social e cultural. Virado para
fora, para o país e o mundo, e não apenas para si próprio.
Aliás, é
interessante verificar que um aspeto emblemático da luta de 1969, que foi o
abandono da aplicação das praxes académicas, tem sido praticamente ignorado por
muitos dos que procuram lembrá-la ou celebrá-la, quando, na altura, essa
escolha traduziu justamente a afirmação prática e simbólica de uma rutura com a
sociedade académica tradicional a aproximação a uma cultura mais cosmopolita e
mais democrática. Porque a “crise de 69” funcionou também como escola de vida e
de democracia.
Rui Bebiano in
http://www.asbeiras.pt/2016/04/opiniao-o-17-de-abril-e-a-crise-de-69/
17 Abril
2016
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