Corpo de Deus – um apontamento histórico
Um texto
sobre a importância da procissão do Corpo de Deus para a definição do
cerimonial político do absolutismo que escrevi em 1983 para o meu livro D. João V. Poder e Espectáculo (aqui ligeiramente adaptado).
A
procissão do Corpo de Deus foi instituída para todo o mundo cristão em 1264
pelo papa Urbano VI. A festividade começou a ser celebrada em Portugal – sempre
na primeira quinta-feira depois da oitava do Pentecostes – no reinado de D.
Afonso III. Viria a ganhar um brilho invulgar a partir do governo de Manuel I,
sendo sempre a sua procissão aquela que de maior luxo e aparato Lisboa
conheceu. O rico espectáculo que habitualmente continha, as possibilidades que
oferecia como momento de espetacular manifestação de fé, tornavam o dia da sua
realização ansiosamente esperado pelo povo.
Porém,
até ao século XVIII, o desfile religioso serviu de instrumento para a expressão
combinada de crenças e tradições diversas. Sem qualquer ordem prevista, seguiam
aí as autoridades municipais, os representantes dos ofícios com os seus antigos
símbolos e bandeiras, as imagens sagradas, nessa altura ainda de grande
sobriedade plástica. Mas também gente vestida das formas mais bizarras, figuras
bestiais, indivíduos de toda a qualidade, sem qualquer distinção. Em 1493
seguiram no cortejo «o rei David, diabos, reis, imperadores, príncipes,
gigantes, feiticeiros, verdadeiro concílio de cómicos e truões». E em 1669
ainda desfilavam «cervos, figuras de cavalo, invenções e danças».
A monarquia
absoluta irá combater essa sorte de práticas, dispondo as procissões mais
conformemente a mentalidade própria da cultura barroca e os objetivos propostos
pelo Concílio de Trento, ao serviço ainda da construção da imagem de uma
sociedade hierarquizada e desejavelmente quieta.
As
disposições reguladoras do préstito do dia do Corpo de Deus vão suceder-se.
Assim, em carta do secretário de Estado ao presidente da Câmara de Lisboa,
aquele informa da vontade do rei.
«Sua
Magestade, que Deus guarde, é servido que (…) não vão na procissão tourinhas,
gigantes, serpe, drago e esparteira, carros e as mais cousas semelhantes, que
costumavam dar os ofícios, nem dança alguma, nem os mouros que costumavam ir
junto a S. Jorge; que na procissão não vá pálio de lã, mas outro mais rico; que
o senado mande lançar cadeias nas bocas das ruas que vão sair às da procissão.»
Prescrevia-se
ainda quem deveria seguir no desfile, quem o não deveria fazer (os negros, as
mulheres, os estridentes charameleiros deveriam ser afastados), e em que ordem
se disporiam ou como se deveriam vestir os todos os participantes. É ainda
traçado o percurso obrigatório, vigiado por regimentos militares para impedir
que alguém o subvertesse.
Este
acontecimento, do qual diria José da Cunha Brochado que «para ver Lisboa de uma
vez fui ver a procissão do Corpo de Deus», teve especial brilho em 1719 e no
ano seguinte. A de 1719, combatendo decididamente os desvios de natureza pagã e
servindo de modelo para os anos que se lhe seguiram, constitui festividade memorável
nos fastos da Igreja portuguesa. Ao mesmo tempo, funcionou como paradigma na
identificação das festividades eclesiásticas e monárquicas, coincidindo no
centro da cena, no pálio, a totalidade dos poderes. O divino, o eclesiástico, o
régio.
A
arrumação processional era clara. As bandeiras dos ofícios mecânicos surgem à
frente, seguidas de um grupo de sonantes trombeteiros. Vinham depois os cavalos
de raça da Casa Real, a irmandade de S. Jorge, tímbales e mais trombeteiros,
outras irmandades, as diversas confrarias, a generalidade dos cleros regular e
secular, os párocos de toda a Lisboa e os cónegos. De seguida a Cúria
patriarcal, a nobreza na sua ordem hierárquica, o Conselho de Estado, o
Conselho da Fazenda, os representantes máximos dos tribunais, as ordens
militares, os pagens e capelães do patriarca, os cantores da Igreja Patriarcal,
o seu cabido, os mais altos dignitários eclesiásticos. Por fim, no vértice da
cerimónia, o pálio, transportado pelo rei, situado à direita, e pelos seus
irmãos que se revezavam com a principal nobreza, cobrindo a representação do
Santíssimo Sacramento transportada pelo patriarca. Enquadrando cenicamente o
desfile, sublinhando as suas caraterísticas dramáticas, dispunha-se um conjunto
vasto de peças de arquitectura perecível de grande cuidado artístico e a mole
imensa de gente claramente perturbada pelo estilo do acto.
A
procissão do Corpo de Deus passaria, a partir dessa altura, a constituir um
signo da grandeza da cidade e do seu real senhor, a máxima expressão,
dourada e sensível, da fé única. A sua importância na sequência do ano cívico
da capital ganhou tal projeção que, no ano de 1737, os varredores da limpeza
não encontraram melhor ocasião para fazerem uma greve pelo pagamento dos
salários, há longo tempo atrasados. Tomás Pinto Brandão irá reconhecer em 1731,
reconhecendo a estreita ligação entre o brilho das festas e as disposições
nesse sentido mandadas tomar pelo rei, que «nada no Planeta quarto / se
enxergava nessa hora, / por disposições do Quinto, / do qual estamos à sombra».
Professor
Rui Bebiano - 26 de maio de 2016
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