O propósito: quatro
observações soltas que visam contribuir para o debate suscitado pela e sobre a
Perestroika, entre aqueles que continuam a reclamar o seu lugar à esquerda e se
não renderam a julgamentos apressados sobre a falência de tudo quanto cheire a
comunismo e a socialismo.
Artigo de Miguel Portas publicado na revista "Combate" e republicado no livro "Malhas que a Memória Tece".
Admitamos a possibilidade de uma restauração capitalista na URSS: ela constituiria, é óbvio, um forte retrocesso das causas emancipadoras. Mas tal restauração deveria levar à conclusão de que a Perestroika não se devia ter iniciado?
Nota: As citações 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 13, 14 e 15 são do livro de Trotsky «A Revolução Traída». As citações 6, 9,10, 11 e 12 são de Bukharin, retiradas da obra de Stephen Cohen«La vie d'un bolschevik», edições Maspero.
Artigo de Miguel Portas publicado na revista "Combate" e republicado no livro "Malhas que a Memória Tece".
Há quem condicione a avaliação da Perestroika ao seu destino. O que
é realmente a Perestroika? Uma câmara de passagem para a restauração do
capitalismo? A trágica repetição de mais um conjunto de reformas a serem
recolocadas na gaveta pelo restabelecimento de uma ordem autoritária que se
reclame do socialismo? Ou o fio da navalha por onde ainda será possível
caminhar em direcção a um regime social de inspiração socialista assente num
regime político democrático?
Ninguém pode prever ao certo. Até porque a Humanidade está a atravessar um
período de convulsões e transformações sem paralelo e, de momento, provisórias.
Em todo o caso, e este é o sentido da primeira observação, a razão da
Perestroika é independente do seu destino. Os homens fazem a História,
respondendo a necessidades. Quanto ao resto, eles lutam entre si por possibilidades.
Admitamos a possibilidade de uma restauração capitalista na URSS: ela constituiria, é óbvio, um forte retrocesso das causas emancipadoras. Mas tal restauração deveria levar à conclusão de que a Perestroika não se devia ter iniciado?
Adoptar como critério da verdade não a práxis mas os resultados tomados
enquanto tal, é um velho hábito que invadiu amplos sectores da esquerda.
Com efeito, o mesmo critério leva hoje boa parte da historiografia
soviética a questionar a razão da própria revolução de Outubro. E registe-se a
coincidência: entre aqueles que aprenderam a História nas vulgatas estalinistas
e nelas se habituaram a descobrir a linha justa dos movimentos históricos,
estão muitos dos que hoje admitem ter sido Outubro um erro histórico. Como erro
histórico terá sido a sua militância comunista. Como razão histórica tinha a II
Internacional. E etc., etc.
A persistência da cultura estalinista nos movimentos de trasladação
política é fenómeno conhecido. No caso vertente, traduzir-se-ia em afirmar que
foi Outubro quem fez Estaline. Ou, deduzindo pela inversa, que Estaline nunca
teria existido sem Outubro. Como se a História se fizesse com ses e a
Rússia não tivesse uma vasta tradição de impulsões modernizadoras na ponta do
chicote.
É verdade que a propaganda comunista e posteriormente a ideologia
oficializada identificaram a revolução de Outubro como revolução socialista.
Mas esta é uma interpretação que, à luz da teoria, só é aceitável concebendo a
revolução russa como processo, e no contexto do início da
revolução à escala internacional.
Com efeito, e devido ao carácter atrasado da Rússia, era consensual entre
os teóricos bolcheviques a dupla missão da revolução: levar as tarefas da
revolução democrática-burguesa até ao fim e abrir caminho para o socialismo.
A novidade introduzida na ortodoxia marxista até então reinante era, a este
título, de monta: uma revolução proletária era necessária na Rússia para
completar o que a burguesia atolada na guerra, se mostrava incapaz de concluir.
Desta originalidade, decorrente, aliás, de outra, segundo a qual a
revolução se poderia iniciar«pelos elos mais fracos da cadeia imperialista»
devido à situação de guerra generalizada, resultava um problema inteiramente
novo: como chegar ao socialismo num país atrasado?
No início dos anos vinte, a resposta assentava na extensão da revolução aos
países de capitalismo desenvolvido e no reconhecimento de que «o regime
soviético atravessa uma fase preparatória na qual importa, assimila e serve-se
das conquistas técnicas e culturais do Ocidente (...) esta fase deverá durar
todo um período histórico»(1).
A digressão por Outubro tem apenas uma intenção: independentemente da
terceira revolução - a que nos anos 30 colectivizaria o conjunto da economia e
fundaria um sistema específico de poder e dominação – Outubro foi a resposta
disponível pela sociedade russa para a simultaneidade de três problemas:
vontade de paz, reforma agrária em benefício dos camponeses e arranque da
industrialização.
Independentemente dos seus destinos ulteriores, a revolução de Outubro
impulsionou a modernização da URSS e constituiu, durante muitos anos, uma
formidável força propulsora dos combates progressistas no Mundo.
PERESTROIKA: UMA REVOLUÇÃO TARDIA
Também a Perestroikafoi a resposta possível da sociedade
soviética ao progressivo esgotamentode um modelo de civilização —
vulgarmente apelidado de socialismo real.
É óbvio que a sociedade ainda funcionava. Funcionava mal, mas funcionava. A
sua crise era larvar e estava economicamente diagnosticada: tentativas de
reforma no interior do sistema foram ensaiadas nas décadas de 60 e 70 em
praticamente todos os países do COMECON. Elas partiam de uma dupla constatação.
Por um lado, a perda de eficácia do planeamento de comando central em
economias globalmente muito estatizadas. A crise era mensurável na diminuição
do crescimento dos principais indicadores económicos com destaque para os
níveis de produtividade.
Por outro lado, a dificuldade cada vez maior em acompanhar o
desenvolvimento técnico e científico dos países de capitalismo avançado, num
quadro de confrontação político-militar entre blocos.
A inovação que o «novo pensamento» de Gorbatchov vem introduzir na
suficiência comunista instalada é simples: as reformas económicas falharam
porque a crise era global e só poderia ser atalhada através do
restabelecimento dos direitos democráticos dos cidadãos e da assunção da
interdependência em que o mundo vive. Que é como quem diz: o planeamento de
comando central, apesar dos métodos empregues, permitiu até aos anos 60
recuperar boa parte do atraso histórico da URSS. Mas a invenção da máquina de
fotocópias, dos PC's e restante panóplia comunicacional determinam a
impossibilidade de um desenvolvimento sustentado sem a livre circulação de
ideias e informações.
A «estagnação» poderia ainda ter-se aguentado um bom par de anos. Mas não
tinha qualquer futuro. Nem o socialismo que desse modelo se reclamasse. Com
efeito:
«O socialismo não se poderia justificar unicamente pela supressão da
exploração. É necessário que também assegure à sociedade muito maior economia
de tempo que o capitalismo. Se esta condição não fosse preenchida, a abolição
da exploração não passaria de um dramático episódio desprovido de futuro» (2).
Uma das dificuldades com que a Perestroika se defronta é o de ter
arrancado com ano de atraso. E o «azar» da Checoslováquia, o de ter tido razão
antes de tempo.
INTERDEPENDÊNCIA E«SOCIALISMO NUM SÓ PAÍS»
Falando claro: que significa assumir a «interdependência«? Significa, desde
logo, reconhecer que a ordem económica mundial é única — e obviamente
capitalista. Pode e deve combater-se tal ordem e reivindicar evoluções
significativas na sua arquitectura - a chamada Nova Ordem económica. Pode
restringir-se a influência da lei do valor na produção e distribuição de um
conjunto de bens sociais. É ainda possível utilizar os instrumentos da política
económica em benefício das classes trabalhadoras. Só não é possível sustentar,
como se sustentou, a fantasia da existência de uma economia mundial do socialismo,
harmoniosa e hermeticamente separada da «outra» economia. Para lá das razões
que se prendem com a «assimilação» das conquistas do capitalismo avançado,
outro factor impedia a durabilidade de tal teoria, forçada pela guerra fria: é
que o esforço de defesa e armamento, ainda razoavelmente compatível com o
estabelecimento da indústria pesada, corrói por dentro qualquer desenvolvimento
que tenha por objecto primordial a satisfação das necessidades humanas.
Com o gosto que se lhe reconhece pelas profecias, Trotsky escrevia em 1936:
«Quanto mais tempo estiver a URSS cercada de capitalismo, tanto mais
profunda será a degenerescência nos tecidos sociais. Um isolamento indefinido
deverá trazer indefinidamente, não o estabelecimento de um comunismo nacional,
mas a restauração do capitalismo» (3).
Até porque:
«O papel progressista da burocracia soviética coincide com o período de
assimilação (...). Quanto mais este avançar, maior será o choque contra o
problema da qualidade. Na economia nacionalizada, a qualidade supõe a
democracia dos produtores e dos consumidores, a liberdade de crítica e de
iniciativa, tudo isto incompatível com o regime totalitário do medo, da mentira
e do panegírico» (4).
Estas citações remetem indirectamente para uma das mais desgraçadas
polémicas dos anos 20: A«Esquerda» do Partido bolchevique invectivava o
«Centro» e a «Direita» porque estes admitiam a «possibilidade do socialismo num
só país». Como todas as polémicas teóricas envenenadas pela disputa política,
as coisas não eram bem assim. De facto, o conjunto da liderança soviética ligou
até 1923 a sorte da Revolução Russa ao destino da revolução da Europa, em
particular na Alemanha. Não apenas por ser inconcebível o socialismo num país
atrasado. A guerra civil e o cerco das potências capitalistas durante os três
anos que durou o«comunismo de guerra» mais não fizeram do que acentuar o
dilema: «A revolução russa será salva pelo proletariado internacional ou
afundar-se-á sob os golpes do capitalismo mundial». A História posterior
negaria os termos do dilema político-militar sintetizado por Bukharin. Mas
colocaria os revolucionários russos perante a tarefa bem menos heróica de
saberem o que fazer a um país onde«a ruína das forças produtivas ultrapassou
tudo quanto a História conhecia»(5), num contexto de fracasso generalizado das
insurreições e levantamentos na Europa.
Foi neste cenário pouco épico que nasceu a NEP - Nova Política Económica.
Inicialmente admitida como um recuo temporário, rapidamente adquirirá, ainda em
vida de Lenine, os contornos de uma política de médio prazo, embora de
regulação e velocidade variáveis.
Mas o acentuar da vertente «reconstrução nacional» não leva a admitir que
Lenine ou Bukharin, no plano da teoria, alguma vez tivessem sustentado a
possibilidade da vitória do «socialismo num só país». Em plena época de combate
antitrotskista, Bukharin sublinhava:
«Nós podemos construir o socialismo, mesmo sobre uma base técnica atrasada
(...). Avançaremos a passo de tartaruga (...) mas não falharemos a empresa.
Entretanto a vitória final do socialismo não é possível no nosso país sem a
ajuda de outros países e sem a revolução mundial» (6).
O desacordo não incidia sobre a teoria. Bukharin utilizou a expressão
«socialismo num só país» como consigna política, tal como Lenine definiu o
comunismo como «os sovietes mais a electrificação». O líder da «Direita»,
convencido da recomposição do capitalismo internacional, procurava uma ideia
mobilizadora para um largo período histórico – o passo de tartaruga. Era sobre
políticas concretas a impulsionar que os desacordos efectivamente incidiam. A
incorporação na teoria oficial dessa versão reduzida da «economia mundial do
socialismo» terá um responsável maior: Estaline.
Concluída a digressão, sobra a interrogação: admitindo a impossibilidade do
«socialismo num só país»,que perspectiva mobilizadora podem ter as forças
socialistas que não passem a vida a sonhar com a revolução mundial? A de
lutarem por regimes democráticos de inspiração socialista que subordinem o
desenvolvimento a uma lógica não capitalista, de «transição». E que,
simultaneamente procurem arrancar ao imperialismo, na ordem internacional,
ganhos efectivos em benefício dos povos e nações com menos recursos. Neste
contexto, escusado será insistir na importância estratégica que teria a vitória
das correntes de inspiração socialista na URSS.
MERCADO E BUROCRACIA
Não existe incompatibilidade entre a perspectiva de um «desenvolvimento não
capitalista» e o marxismo. Por junto e atacado, o «não-capitalismo» é o caminho
possível em direcção ao socialismo, no pressuposto de um poder político
maioritariamente sufragado (mesmo que inicialmente legitimado
revolucionariamente, no caso de ditaduras), onde as tendências socialistas
façam sentir o seu peso. O«não-capitalismo» é, simplesmente, uma transição de
regulação e velocidade variáveis, condicionado pela expressão da vontade
popular.
É possível desenvolver políticas de inspiração socialista no quadro
nacional por períodos históricos mais ou menos longos. Elas serão tanto mais
possíveis, quanto a ordem económica internacional seja forçada a fazer
concessões aos países menos desenvolvidos e os recursos deixem de ser aplicados
em despesas militares e burocráticas.
O «não-capitalismo»trava efectivamente um combate desigual com a ordem
capitalista. Porque o combate é desigual, a questão da base social de apoio às
políticas de inspiração socialista - portadoras do multifacetado leque das
causas emancipadoras - é decisiva.
O «não-capitalismo» é o passo de tartaruga Bukhariniano. No plano económico
significa economia mista, planeamento não burocrático e mercado. O
«não-capitalismo» é uma política de«reformas fortes» no quadro de sociedades
que são ainda mais burguesas que socialistas ou que voltaram a ser mais
burguesas que socialistas. A diferença face ao reformismo histórico, reside na
ideia de que tais reformas não existem para «adaptar» o sistema, mas para o
superar. Sendo verdade que - admitindo-se a vontade popular como determinante
do modo e do ritmo — o risco de reversão existe sempre.
O «não-capitalismo» -assente na combinação das forças progressistas no
poder político com o exercício da cidadania pelas forças sociais mais dinâmicas
da «sociedade civil»- tem por adversário não apenas as tendências capitalistas
como a burocracia. Esta é uma razão suplementar para a existência do mercado.
Com efeito, Trotsky tinha razão quando explicitava os factores do reforço do
estado soviético, ao contrário das profecias da teoria:
«Não são os restos, em si próprios impotentes, das classes outrora
dirigentes, que impedem o Estado soviético de deperecer (...). São factores
infinitamente mais poderosos, tais como a indigência material, a falta de
cultura geral e a dominação do «direito burguês» no que interessa mais
vivamente a qualquer homem: o da sua conservação pessoal» (7).
Por isto, «o exercício do poder tornou-se a especialidade de um agrupamento
social que procurava com a maior impaciência resolver a sua própria questão
social» (8).
Mas é duvidoso que alguma vez tivesse entendido, como Bukharin, a
importância de um razoável grau de autonomia entre o Estado e a «sociedade
civil». O receio do líder da«Direita» pelo monopólio do Estado está
patente na sua afirmação de que«onde a concentração de meios de produção, dos
transportes e das finanças nas mãos do Estado atingiu proporções inigualáveis
(...), todo o erro de cálculo é um problema para o conjunto do corpo social»
(9).
O combate que Bukharin trava, primeiro contra a «Esquerda» dos bolcheviques
e depois contra Estaline, também se faz em nome da limitação do Estado.
«Se ele tomar tudo em mãos, terá de engendrar um aparelho administrativo
colossal. Substituir-se às funções económicas dos pequenos produtores e
agricultores exige demasiados empregados e demasiados administradores. Meter em
todo o lado funcionários do Estado implica uma estrutura muito mais dispendiosa
que as perdas ocasionadas pela anarquia dos pequenos produtores» (10).
O crescimento excessivo das funções estatais faria com que «no fim, o
aparelho económico do Estado proletário fizesse sentir todo o seu peso sobre as
forças produtivas, travando o seu desenvolvimento» (11). Em alternativa, o
modelo de transição ensaiado nos anos 20, apostava na possibilidade de
«ultrapassar o mercado pelo mercado». «Combatendo no mercado, o Estado e as
cooperativas enfraquecerão o seu rival, o capitalismo privado. No fim, as
relações de mercado deixarão de se desenvolver e, tarde ou cedo, o próprio
mercado periclitará (...). Chegar-se-á ao socialismo precisamente através das
relações de mercado» (12). Tal era, em substância o pensamento bukhariniano, no
pressuposto de que o poder político fosse proletário.
Percebem-se agora as razões pelas quais, no início da Perestroika, o
«regresso a Lenine» se faz em boa medida através da recuperação das teses de
Bukharin. Com efeito, a actual economia soviética terá de voltar a passar por
um longo período de«assimilação das conquistas técnicas do Ocidente», num
quadro em que se exige«não a diminuição da circulação de mercadorias, mas o seu
extremo alargamento»(13) e se considera que «os preços servirão tanto melhor a
causa do socialismo quanto mais honestamente exprimirem as relações económicas»
(14). Não tem mais procedência a tese de «professores obedientes segundo a qual
o preço soviético (...) não era uma categoria económica, mas uma categoria
administrativa destinada a melhor servir a nova repartição da renda nacional.
Estes professores esqueciam-se de explicar como é possível dirigir os
preços sem conhecer o preço do custo real, e como se pode calcular este preço,
se todos os preços, em vez de exprimirem a quantidade de trabalho socialmente
necessário à produção dos artigos, exprimem a vontade da burocracia» (15).
O notável destas citações - e muitas outras do mesmo teor se poderiam
acrescentar – é que elas não foram proferidas pelos economistas da Perestroika.
São de Trotsky, escritas em 1936, a propósito dos métodos da terceira
Revolução de Estaline...
Nota: As citações 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 13, 14 e 15 são do livro de Trotsky «A Revolução Traída». As citações 6, 9,10, 11 e 12 são de Bukharin, retiradas da obra de Stephen Cohen«La vie d'un bolschevik», edições Maspero.
Ilustração de Pedro
Amaral publicada na revista Combate.
Sem comentários:
Enviar um comentário