segunda-feira, 13 de abril de 2020

AS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 1969

A Assembleia Nacional em 1971. Fotografia de Miranda Castela, Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

Em setembro de 1968, devido ao radical agravamento do seu estado de saúde na sequência de um acidente doméstico ocorrido dois meses antes, António de Oliveira Salazar era exonerado da Presidência do Conselho pelo Presidente da República, Américo Tomás, e substituído por Marcelo Caetano, após ter ocupado o cargo por trinta e seis anos consecutivos. Caetano era o líder de uma corrente reformista, de ambição modernizadora, que tinha ganhado o seu espaço dentro do Estado Novo na segunda metade dos anos 40 e fora, depois, expandindo e consolidando a sua rede de apoios e a sua influência nas décadas seguintes, sempre à espera da chegada do momento em que, com ordem e dentro da legalidade, pudesse substituir Salazar e a fação mais conservadora na chefia do regime.1 Após algumas oportunidades falhadas no passado, o objetivo era, assim, finalmente atingido, mas os problemas que a situação política portuguesa apresentava a Caetano e ao seu círculo eram complexos, ainda que, por enquanto, relativamente controlados. Em primeiro lugar, uma guerra colonial em três frentes, com todo o desgaste político e social, bem como o enorme esforço militar, económico e humano, que tal implicava. Depois, um cada vez maior isolamento internacional devido ao cariz colonialista do regime e à insistência na continuação daquela mesma guerra. Finalmente, um setor político ultraconservador avesso a mudanças de fundo, por um lado, e, por outro, a diversificação ideológica da Oposição - que passara, por exemplo, a incluir católicos e a contar com um movimento académico crescentemente politizado e interventivo - e modificação dos seus métodos de intervenção, que, no caso de certos grupos de esquerda, tendiam mesmo a radicalizar-se.2

Marcelo Caetano com Deputados na Biblioteca da Assembleia Nacional, em 1973. Fotografia de Miranda Castela, AHP.

Apesar do cenário que encontrou, Marcelo Caetano, no seu primeiro ano como Presidente do Conselho, conseguiu criar um ambiente favorável à sua governação, sobretudo graças às grandes expectativas geradas em torno das suas intenções liberalizantes e modernizadoras, até porque estas pareciam ser confirmadas por uma série de medidas reformistas tomadas logo a partir do final de 1968 e que se prolongaram pelo ano seguinte: a autorização de regresso a Portugal do oposicionista Mário Soares, então deportado em São Tomé desde março, assim como do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, exilado no estrangeiro há uma década por ter criticado o regime; a alteração da lei eleitoral no sentido da ampliação da igualdade no direito de voto; a revisão da legislação sindical em benefício dos trabalhadores; a criação de um regime especial de abono de família para os trabalhadores rurais; a limitação, ainda que ligeira, de alguns poderes da polícia política. Embora em relação ao problema central português da época, a guerra colonial, a política fosse, no essencial, de continuidade, estes sinais de abertura foram uma “lufada de ar fresco” num país dirigido por um Estado Novo cada vez mais velho, fechado e irrespirável, e um sentimento de esperança não tardou a propagar-se pela sociedade portuguesa, originando o período histórico que veio a ser conhecido como a «Primavera marcelista».3
José Guilherme de Melo e Castro, AHP.


A ação de reformistas como José Guilherme de Melo e Castro, católico liberal, cuja ascensão ao cargo de presidente da Comissão Executiva do partido único, a União Nacional, já tinha sido, ela própria, sintoma de mudanças significativas, foi igualmente fundamental, pois ao atrair muitos jovens de formação liberal e pró-europeia para a ocupação de cargos políticos e técnicos no seio do regime, promoveu a renovação da sua elite.4 Esta era, aliás, uma das grandes preocupações de Marcelo Caetano, o que é compreensível: políticas novas necessitavam de gente nova para as conceber e levar a cabo. Assim, nos primeiros seis meses no poder, Caetano substituiu boa parte dos governadores civis, remodelou o elenco do seu Governo, e promoveu a mudança das chefias da União Nacional.5 O próximo passo seria levar sangue novo, também, à Assembleia Nacional, por via das eleições que estavam previstas para o ano de 1969,6 e que acabariam por ser marcadas para o dia 26 de outubro.
De facto, uma das funções do sufrágio seria, como um dos passos na liberalização marcelista, permitir integrar as várias correntes políticas existentes na área do regime, dando-lhes representação parlamentar e esperando delas a colaboração com o Governo. Segundo o estudioso Tiago Fernandes, Marcelo Caetano pretendia aumentar os apoios que lhe permitissem contrabalançar o poder e a influência da fação mais conservadora do Estado Novo, dar uma imagem para o estrangeiro de maior abertura política, e «esvaziar as críticas da oposição democrática». É no âmbito desta estratégia que Melo e Castro se vai encarregar de contactar várias personalidades liberais, quase todas jovens, tentando cativá-las para fazerem parte das listas da União Nacional. Entre os que aceitaram o convite, contam-se os nomes de José Pedro Pinto Leite, Francisco Pinto Balsemão, Francisco Sá Carneiro, João Bosco Mota Amaral, João Pedro Miller Guerra, e Joaquim Magalhães Mota.7

José Pedro Pinto Leite, AHP.

Francisco Pinto Balsemão, AHP.

Francisco Sá Carneiro, AHP.

João Bosco Mota Amaral, AHP.

João Pedro Miller Guerra, AHP.


Joaquim Magalhães Mota, AHP.


A reação das duas principais forças da Oposição face à evolução dos acontecimentos políticos foi bastante diferenteA Associação Socialista Portuguesa (ASP), fundada em 1964 e onde já pontificavam figuras como Francisco Salgado Zenha e Mário Soares, elaborou, em dezembro de 1968, um manifesto intitulado «À Nação», assinado por cerca de quatrocentas pessoas. Nesse texto, que Soares caracterizaria, mais tarde, como «um teste das intenções governativas»8 quanto a uma verdadeira mudança do sistema, os signatários rejeitavam o «socialismo totalitário», assumindo-se como socialistas democráticos, e declaravam-se disponíveis para o «diálogo político» com o Governo, desde que, em contrapartida, este, como prova da sua vontade de proceder a uma efetiva liberalização, aceitasse a sua lista de exigências, as quais incluíam a liberdade de organização e atuação política, a liberdade de expressão, uma «ampla amnistia» aos presos e exilados políticos, a diminuição dos poderes da polícia política e da censura, e uma lei eleitoral que permitisse uma disputa séria e honesta nas eleições do ano seguinte.9
Quanto ao Partido Comunista Português (PCP), através do seu Comité Central, considerava o marcelismo como uma mera continuação do salazarismo, embora «a coberto duma demagogia “liberalizante”», cujo objetivo principal passava pela revitalização da base de apoio do regime, mas, também, e sobretudo, pela criação de fraturas no seio da Oposição, neutralizando-a e isolando os comunistas.10 As movimentações dos socialistas no sentido da demarcação ideológica face ao PCP, da afirmação da sua autonomia perante o resto da Oposição e da recetividade ao diálogo com o regime pareciam confirmar este receios e também mereceram a atenção dos comunistas, que, temendo o divisionismo na Oposição e a perda da posição dominante no seu seio, as classificaram como manifestando «tendências nítidas para o colaboracionismo com a ditadura».11 A tensão entre estas duas estratégias perante o marcelismo iria marcar a relação entre comunistas e os socialistas da ASP durante quase toda a primeira metade de 1969, com Mário Soares a ser escolhido como alvo preferencial de ataques políticos em diversas ocasiões.12 Logo em janeiro, num evento comemorativo da tentativa revolucionária republicana de 1891, no Porto, Soares foi vaiado e apelidado de «colaboracionista» e «fascista» por agitadores comunistas presentes na sala.13
Entretanto, nesse mesmo mês, surgia a Comissão Promotora do Voto, constituída por oposicionistas das mais variadas tendências políticas, e que, num documento endereçado a Marcelo Caetano, se propunha «contribuir para a concretização das condições regulamentares e de consciência cívica conducentes à seriedade e autenticidade do próximo ato eleitoral […], apontando ao Governo as disposições que considera fundamentais e promovendo entre todos os cidadãos a formação de uma consciência cívica esclarecida». Entre as referidas «disposições» encontravam-se um novo recenseamento eleitoral, uma nova lei eleitoral, a garantia das liberdades de organização e atuação das forças políticas, o esclarecimento da população sobre o direito de voto e o combate à fraude eleitoral. A conduta das autoridades perante esta iniciativa foi sintomática: no início de fevereiro, o governador civil de Lisboa, seguindo orientações de um dos «ultras» do regime, o ministro do Interior António Gonçalves Rapazote, emitia um despacho onde negava a «existência legal» da Comissão, e, em consequência disso, proibia a sua actividade.14
Esta decisão demonstra que o setor mais conservador do regime temia uma Oposição organizada e ativa e o efeito que tal poderia ter nas eleições que se avizinhavam. Um relatório interno e confidencial da Legião Portuguesa, redigido também em fevereiro, confirma esta ideia em tom preocupante. A Oposição é caracterizada como motivada, confiante e muito ativa, capaz de cativar jovens e mulheres e empenhada numa forte «campanha de mobilização cívica das massas populares» e de denúncia dos métodos habituais de falseamento dos resultados eleitorais. Já a atitude dos tradicionais «colaboradores» da «situação» - o poder local, os padres, os funcionários públicos, os militares, os empresários e proprietários, etc. - aos quais a Legião atribuía um papel determinante na vitória do Governo nos sufrágios anteriores, variava entre o descontentamento, o desinteresse, ou mesmo o afastamento em relação ao regime. Até na União Nacional alastrava a apatia e a convicção ideológica não abundava entre os seus membros, mais interessados em conseguir satisfazer ambições pessoais do que em colaborar politicamente com o regime. O relatório chama, igualmente, a atenção para os receios existentes entre os apoiantes do regime quanto ao que poderia acontecer caso não fosse possível recorrer à fraude: «Há a impressão, entre os situacionistas, de que se for permitida a fiscalização nas assembleias de voto, a percentagem de votos, a favor da lista da União Nacional, em algumas localidades, será de 3%, e ainda muitas abstenções, ao passo que a oposição alcançará 50%».15

II

O ano de 1969 foi avançando e a ASP, que havia dado o benefício da dúvida à possibilidade, ainda que remota, de o regime querer mesmo realizar eleições em condições de liberdade e igualdade para todos os participantes, verificara que não tinham sido criadas as condições mínimas para que tal fosse possível, nem parecia haver vontade governativa para alterar a situação. Assim, no manifesto «Ao País», elaborado em maio, chegavam à seguinte conclusão: «o País tem assistido, definitivamente desiludido, à progressiva instalação do que muitos comentadores da vida nacional chamam “salazarismo sem Salazar”. […] E nenhuma indicação permite supor que as próximas eleições deixarão de ser a pura farsa que sempre foram no passado!».16
 Esta tomada de consciência permitiu uma maior aproximação aos comunistas e a outros oposicionistas, com o entendimento a chegar na reunião de S. Pedro de Moel, na Marinha Grande. Aí foi possível estabelecer a chamada Plataforma de Ação Comum, um conjunto de pontos essenciais com que todas as correntes oposicionistas concordavam e que, citando o próprio documento, serviria de «base de trabalho, na formulação das coordenadas gerais da campanha eleitoral». Entre esses pontos, encontravam-se reivindicações como o estabelecimento das liberdades de expressão, informação, reunião e associação, a extinção da polícia política, a libertação dos presos políticos, a liberdade sindical, a reforma da previdência social, cuidados de saúde gratuitos para toda a população, a reforma agrária, a democratização do ensino, e a «resolução pacífica e política das guerras do ultramar, na base do reconhecimento dos direitos dos povos à autodeterminação», ainda que «precedida de um amplo debate nacional». Apelava-se a uma Oposição unida e coesa e anunciava-se a continuação da luta pelo acesso aos cadernos eleitorais, pela fiscalização do ato eleitoral, pelo fim da censura, enfim, por uma disputa eleitoral livre e justa. E, ponto fundamental, a Oposição decidia ir mesmo a votos, coisa que não acontecia numa eleição para a Assembleia Nacional desde 1957, embora nesse ano tivessem ido até ao fim apenas num círculo eleitoral.17
Mas se, em termos programáticos, fora possível atingir um acordo, o mesmo já não se pode dizer quanto à representação interna e à organização das forças oposicionistas nas comissões eleitorais. A ASP queria uma existência autónoma face à tendência de hegemonia do PCP e dos grupos próximos deste e, embora tenham decorrido negociações ao longo de todo o Verão,18 os socialistas acabaram por decidir concorrer em listas próprias nos distritos de Lisboa, Porto e Braga, sob o nome de Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD). Nas suas listas, além de socialistas como Mário Soares, Salgado Zenha, Gustavo Soromenho, Jaime Gama, José de Magalhães Godinho ou Raul Rêgo, encontravam-se, também, católicos progressistas (Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner Andresen) e monárquicos (Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Teles). A CEUD tentou, ainda, concorrer em Moçambique, porém, a lista, de que fazia parte António de Almeida Santos, foi recusada.19 Nos restantes distritos de Portugal Continental, bem como em Ponta Delgada e no Funchal, os socialistas da ASP concorreram integrados nas listas da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), juntamente com comunistas ou figuras próximas destes (Glória Marreiros, José Gaspar Teixeira, José Tengarrinha, Mário Sottomayor Cardia), liberais, católicos progressistas (Francisco Pereira de Moura, João Bénard da Costa, José Manuel Galvão Teles), e socialistas independentes (Jorge Sampaio). Em Lisboa, apresentou-se, também, a votos uma lista da Comissão Eleitoral Monárquica (CEM), onde se incluíam personalidades como Henrique Barrilaro Ruas e Francisco Rolão Preto.
CDE, CEUD, e CEM foram as únicas três organizações oposicionistas a ir a votos nas eleições de outubro de 1969. Apresentaram 182 candidatos em 22 círculos eleitorais (num total de 30 círculos existentes) e disputaram 100 lugares (94 no continente e 6 nos Açores e Madeira) dos 130 disponíveis, demonstrando, desse modo, uma capacidade de mobilização e organização oposicionista nunca vista até então em eleições para a Assembleia Nacional.20 A Comissão Eleitoral Nacionalista Independente (CENI) e a chamada «Terceira Força» tiveram uma existência discreta e fugaz e acabaram por desistir antes do sufrágio. Já os republicanos moderados da Ação Democrato-Social (ADS), em que pontificava o histórico dirigente da Primeira República Francisco da Cunha Leal, então já octogenário, reafirmaram, no início de outubro, a intenção, já publicitada em março, de se absterem por não estarem reunidas as condições mínimas para garantir um ato eleitoral sério e genuinamente democrático, aproveitando, ainda, para expor o que julgavam ser a estratégia do regime: «Está o Governo […] empenhado em que os oposicionistas, indo às urnas, mostrem a sua impreparação e exibam as divergências que os separam, negando-lhes entretanto os direitos de cidadania que reivindicam. Por outro lado, confia em que pratiquem erros de cálculo e desvios de ação inevitáveis, para os acusar de irresponsáveis. Assim conseguirá, sem lhes fazer quaisquer concessões, uma participação de adversários que lhe dará uma vitória cómoda, a qual permitirá, cá dentro e lá fora, apresentar o resultado do próximo ato eleitoral como genuína expressão da vontade da Nação».21
A visão da CDE e da CEUD sobre esta matéria era diferente da da ADS. Embora não tivessem ilusões quanto ao falseamento das eleições e, consequentemente, ao seu desfecho, acreditavam que ir até ao fim permitiria denunciar o processo fraudulento por trás do sufrágio.22 Como se podia ler num manifesto da CDE: «a intervenção eleitoral permite denunciar as próprias eleições em termos mais eficazes do que aqueles que a abstenção oferece. A maior possibilidade de expressão (muito relativa, embora) e o culto de uma legalidade fictícia oferecem, ao interveniente e não ao abstencionista, a possibilidade de desmascarar o processo. Mas, mais importante do que isto, é o facto indesmentível de o fenómeno eleitoral ainda gerar entre nós um clima de atenção e interesse em torno dos problemas políticos e sociais do País. É um momento em que as massas, alheadas duma política que nunca lhes deu justiça e felicidade, entreveem que afinal a ligação é estreita entre uma e outras. […] Eis o que justifica a nossa intervenção. Pretendemos acordar consciências adormecidas […], dinamizá-las, fornecer-lhes meios para a sua autorrevelação, devolver ao povo a iniciativa que lhe compete».23



Cartaz da Oposição Democrática

Cartaz da CEUD

Cartaz da CDE


III

Em coerência com a imagem liberalizante que o Governo queria passar e com os objetivos que queria alcançar nas eleições, a lei eleitoral sofreu algumas alterações. A principal foi, em dezembro de 1968, o alargamento do sufrágio a todas as mulheres que soubessem ler e escrever, - a não ser nos casos em que fossem abrangidas pelas exceções previstas na lei, sem distinção de sexo - colocando os requisitos de voto feminino a par dos existentes para o voto masculino. Num decreto-lei promulgado a 5 de setembro de 1969, foi finalmente autorizada a formação de comissões eleitorais, quando faltava apenas pouco mais de um mês e meio para as eleições, o que limitou bastante a organização e a atividade da Oposição. Como se não bastasse, previa-se que as comissões podiam ser extintas pelos governadores civis - que eram nomeados pelo Ministério do Interior - por motivos vagos e generalistas, que abriam espaço para arbitrariedades. De acordo com o mesmo documento, os candidatos tinham que declarar que aceitavam «a Constituição e os princípios fundamentais da ordem social estabelecida» e podiam ser considerados inelegíveis, se os governadores civis assim determinassem, o que veio a acontecer em cinco ocasiões. Refira-se, igualmente, que, não obstante passar a ser autorizada a fiscalização do apuramento de votos pelos candidatos do círculo respetivo ou por um delegado, assim como a consulta dos cadernos de recenseamento, a verdade é que, na prática, as forças afetas ao regime tentaram, por todos os meios, evitar que estas inovações legais fossem respeitadas na prática.24
Com efeito, a campanha e o ato eleitoral ficaram marcados, como era hábito nos sufrágios durante o Estado Novo, pela fraude, pela perseguição e intimidação, e pela constante criação de todo o tipo de obstáculos à atividade da Oposição: agressões a candidatos e ativistas, quando não mesmo a sua prisão; assaltos a sedes de campanha e outras instalações por parte da polícia e de legionários; limitações no acesso a salas onde pudessem ter lugar eventos de propaganda, os quais, quando aconteciam, eram, com frequência interrompidos pela polícia, ou perturbados por legionários; apreensão de livros e de material de propaganda; impossibilidade de acesso à televisão e à rádio para efeitos de propaganda; censura na imprensa; dificuldades, ou mesmo fraudes, na distribuição dos boletins de voto, incluindo troca de boletins de voto da Oposição, ou atrasos deliberados na sua entrega pelos Correios; falta de uniformidade dos mesmos boletins; falsificação de mais de um milhar e meio de certidões, assim como o uso de certidões de pessoas falecidas, ou ausentes, tudo de maneira a que membros da Legião Portuguesa pudessem votar várias vezes assumindo a identidade de pessoas diferentes, com a conivência, claro, dos presidentes das mesas de voto.25
Para lá destas práticas, havia ainda dois problemas estruturais determinantes. Primeiro, a vigência de um sistema eleitoral maioritário, isto é, em que o partido que tinha mais votos num círculo elegia automaticamente todos os seus candidatos por esse mesmo círculo, impedindo qualquer hipótese de representação parlamentar de minorias.26 Depois, a manipulação do recenseamento eleitoral no sentido dos interesses do Governo, «uma das chaves do sucesso» do regime nas eleições, nas palavras de José Manuel Tavares Castilho.27
Durante os meses de setembro e outubro, Marcelo Caetano, porventura consciente de uma certa ineficácia propagandística da União Nacional, aproveitou as suas intervenções públicas para fazer passar a mensagem do Governo. E esta passava por colocar perante os portugueses, tentando assustá-los, aquilo a que Mário Soares chamou de «dilemas»,28 sendo que os dois principais estavam formulados da seguinte maneira: primeiro, votar na União Nacional era reforçar a política ultramarina do Governo, ou seja, uma «política de progressivo desenvolvimento e crescente autonomia das províncias ultramarinas», que manteria a integridade da Nação (e a guerra, embora isso não fosse referido diretamente), enquanto que optar pela Oposição significaria o simples abandono desses territórios, uma espécie de mutilação da Nação; segundo, votar na União Nacional era votar na ordem, na paz, na estabilidade, na via reformista, enquanto que votar na Oposição era escolher o caminho da violência, da miséria, da revolução, do perigo do comunismo e do anarquismo, enfim, do caos, tanto no Portugal europeu, como no ultramarino.29
Não é de estranhar a importância dada à questão ultramarina. Tratava-se do problema central do regime e quase toda a sua política girava em torno do esforço de guerra e da manutenção dos territórios portugueses em África. Assim, para além da renovação já atrás referida, havia um propósito ainda mais crucial para o Presidente do Conselho nestas eleições. Segundo o historiador Fernando Rosas, «Caetano encararia as eleições para a Assembleia Nacional de outubro de 1969 como uma peça legitimadora essencial da sua política de liberalizar mantendo a guerra […]. Pressente que o capital inicial de simpatia e confiança adquirido pode ser desbaratado, quando as pessoas perceberem que as mudanças que desejam têm de ser subordinadas à continuação de um esforço militar que não querem. […] Quer buscar no voto, no assentimento popular, a autorização para prosseguir o empenhamento militar no ultramar».30
Como era expectável, a União Nacional venceu as eleições por uma larga margem em relação à Oposição, tendo obtido 88% dos votos contra 10% da CDE, 1,9% da CEUD, e 0,8% da CEM. O partido único ganhou em todos os distritos, embora a Oposição tenha alcançado vitórias em algumas freguesias de concelhos como Almada, Moita, Montijo, Palmela ou Seixal, e em todas as freguesias do concelho do Barreiro. A nível distrital, o melhor resultado oposicionista foi o da CDE em Setúbal, com 34,7% dos votos. Para um sufrágio que se queria legitimador da política do Governo, os números relativos à participação deixavam muito a desejar. Entre os 9,5 milhões de habitantes de Portugal Continental e Ilhas só existiam 1,8 milhões de recenseados, o que correspondia a 29% da população com mais de 21 anos. A acrescentar à pouca representatividade da população recenseada refira-se a alta abstenção verificada no seu seio, que atingiu os 38,4%, isto é, 18,4% da população total portuguesa maior de idade no Continente, Açores e Madeira. Somando os votantes dos distritos mais populosos do País, Lisboa e Porto, obtemos apenas pouco mais de 296 000 pessoas, o que é, evidentemente, muito pouco. A esta realidade há que juntar os votos fraudulentos, que, se pudessem ser contabilizados, elevariam muito mais os números da abstenção.31

IV

António Reis, um dos fundadores e militantes históricos do Partido Socialista (PS) e, em 1969, jovem candidato da CDE pelo distrito de Santarém, escreveu, trinta anos depois, que «a campanha de 1969 assinalou o princípio do fim da Ditadura». E, olhando para as consequências que teve no regime e na Oposição nos anos seguintes, é fácil de entender o porquê desta afirmação. A Oposição, através da denúncia - a possível - da falta de liberdade e igualdade em que haviam decorrido a campanha e a pré-campanha eleitorais, e do cariz fraudulento do ato eleitoral, levara a cabo a sua missão de fazer cair a máscara liberalizante do marcelismoA partir de então, o combate voltou a ser feito fora da legalidade e a repressão regressou em força contra comunistas, católicos progressistas, e socialistas - com o exílio de Mário Soares e a prisão de Raul Rêgo e Salgado Zenha -, assim como contra o movimento estudantil, cuja agitação e protesto político continuará com grande intensidade nos primeiros anos da década de 70. Com o recuo do regime no campo das liberdades políticas e cívicas, a Oposição tenderá a radicalizar-se no discurso e na ação, surgindo, desse modo, vários grupos de extrema-esquerda, alguns deles vocacionados para a luta armada e que estarão por trás de vários atentados bombistas e outras operações arrojadas. Para além da Oposição externa, o regime teve também que enfrentar um «monstro» que ele próprio criara. Com efeito, qual “cavalo de Troia”, o grupo de liberais que Marcelo Caetano conseguira, por meio de Melo e Castro, levar para a Assembleia Nacional, acabará por constituir a chamada «Ala Liberal», uma aguerrida frente oposicionista interna que, embora sem resultados práticos, lutará com tenacidade pelo alargamento das liberdades e por uma revisão constitucional elaborada no mesmo sentido, até parte dos seus membros, frustrada, renunciar ao mandato ou desistir de se recandidatar em 1973. Recorrendo mais uma vez às palavras de Fernando Rosas, «consultada a inviabilidade de liberalizar mantendo a guerra, e partindo da impossibilidade de lhe pôr termo, o regime vai manter a guerra, acabando com a liberalização». Ao seguir este caminho, Marcelo Caetano cairá, juntamente com o regime, em pouco mais de quatro anos.
Porém, para lá do papel que tiveram, a longo prazo, na queda do regime, as eleições de 1969 podem ser vistas de uma outra perspetiva, complementar: a de que foram, também, a génese de parte do que viria a ser o quadro partidário fundador da Democracia portuguesa. De facto, do primeiro sufrágio legislativo marcelista resultaram, quer a autonomização de uma corrente socialista específica, a ASP, que dará, depois, origem ao Partido Socialista, em 1973, quer a formação da Ala Liberal, da qual sairá, em 1974, o núcleo fundador do Partido Popular Democrático (PPD). Em ambos os casos, há dois líderes que se afirmam a partir de 1969, embora de modos muito diferentes: Mário Soares e Francisco Sá Carneiro. A CDE transformar-se-á num partido político, o Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE), com um dos candidatos de 1969, José Tengarrinha, como seu principal dirigente. Se juntarmos a estes três partidos o já existente PCP e o futuro Centro Democrático e Social (CDS), temos reunidas as cinco principais forças político-partidárias do processo revolucionário e dos primeiros anos de democracia em Portugal. Até os vários grupos de extrema-esquerda que marcarão os anos de 1974 e 1975 nasceram, em boa parte, como reação ao desfecho das eleições de 1969 e ao que isso significou em termos de continuação da guerra colonial e de maior repressão e fechamento do regime. Como Mário Soares escreveu, três décadas mais tarde, a propósito do «significado histórico» das eleições de 1969, «a velha Oposição Democrática começou a desembaraçar-se da sua carga mítica unanimista e unicitária, afirmando claramente a pluralidade dos seus movimentos, tendências e correntes políticas e ideológicas, preparando o terreno para o regime democrático e pluralista que, cinco anos depois, começou a desenhar-se com a Revolução do 25 de Abril.»


Ricardo Revez


Fontes apresentadas pelo autor deste texto:


1-Cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Mattoso), s. l., Editorial Estampa, 1998, pp. 357-358, pp. 452-454.

2-Cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), pp. 482-484.

3-Para este parágrafo, cf. Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), s. l., Círculo de Leitores, 2004, pp. 16-17; cf. Rita Almeida de Carvalho, «O Marcelismo à Luz da Revisão Constitucional de 1971», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), pp. 38-39.

4-Cf. José Manuel Tavares Castilho, Marcello Caetano. Uma Biografia Política, Coimbra, Almedina, 2012, p. 454, p. 474; cf. Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», p. 16.

5-Cf. José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 464, p. 474.

6-Cf. Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro / São Paulo, Distribuidora Record, 1974, pp. 54-55.

7-Para este parágrafo, cf. Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Assembleia da República / Dom Quixote, 2006, p. 21, p. 24, pp. 31-32, pp. 519-520.

8-Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, s. l., Editora Arcádia, 1974, p. 609.

9-Cf. Mário Soares, Escritos Políticos, Lisboa, Edição do Autor, 1969, pp. 211-218.

10-Cf. João Madeira, «As Oposições de Esquerda e a Extrema-Esquerda», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), pp. 95-96, p. 103.

11-Cf. João Madeira, op. cit., p. 98, pp. 104-105.

12-Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, pp. 611-613.

13-Cf. José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 494; cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, p. 614.

14-Para este parágrafo, cf. As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), [imp. Lisboa/Mirandela], Publicações Europa-América, [imp. 1970], pp. 45-46, p. 53.

15-Para este parágrafo, cf. Legião Portuguesa - Comando Geral, «Informação sobre o Ambiente Eleitoral», reproduzido em Maria Natércia Coimbra, «A Legião Portuguesa e as Eleições de 1969», in Nova Renascença, vol. XVIII, nº 68, inverno de 1998, pp. 12-17.

16-Mário Soares, Escritos Políticos, pp. 230-231.

17-Para este parágrafo, cf. «A Reunião Plenária de São Pedro de Moel» e «Plataforma de Ação Comum da Oposição Democrática», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), pp. 60-63; cf. José Manuel Quintas, «Eleições para a Assembleia Nacional», in Dicionário de História do Estado Novo, (dir. de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito), vol. 1, Venda Nova, Bertrand, 1996, pp. 289-290.

18-Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, pp. 625-626, p. 631; cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 488; cf. João Madeira, op. cit., p. 107, p. 109; cf. Mário Matos e Lemos, Oposição e Eleições no Estado Novo, (coordenação, introdução, e conclusão de Luís Reis Torgal), Lisboa, Assembleia da República, 2012, pp. 280-284.

19-Cf. Mário Matos e Lemos, op. cit., p. 288.

20-Cf. Mário Matos e Lemos, op. cit., p. 288; cf. «Generalidades», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira).
Deviam ter sido 104 lugares, mas em Portalegre não foi possível entregar a lista no prazo legal.

21-Cf. «Posição da Ação Democrato-Social», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), pp. 104, pp. 107-109.

22-Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, p. 623.

23-«Manifesto político», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), pp. 354-355.

24-Para este parágrafo cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 488; cf. José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 462; cf. Mário Matos e Lemos, op.cit., p. 288; cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, pp. 637-638; cf. Lei n.º 2137, in Diário do Governo, 1ª série, n.º 303, 23 de Dezembro de 1968, p. 1914,; cf. Decreto-Lei n.º 49.229, in Diário do Governo, 1ª série, n.º 212, 10 de Setembro de 1969, pp. 1237-1238.

25-Cf. Presidência do Conselho de Ministros / Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, Eleições no Regime Fascista, [imp. Mem Martins], Gráfica Europa Lda., [imp. 1979], pp. 63-68; cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, pp. 619-622, pp. 635-642; cf. João Madeira, op. cit., p. 111; cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), pp. 489-490.

26-Cf. José Manuel Tavares Castilho, op. cit., pp. 518-519.

27-Cf. José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 499, p. 514; cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, p. 620.

28-Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, p. 642.

29-Cf. «Intervenções do Presidente do Conselho, Prof. Marcelo Caetano», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), p. 155, p. 161, p. 176.

30-Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), pp. 487-488.

31-Os dados referidos neste parágrafo foram recolhidos nas seguintes obras: José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 527; «Resultados das Eleições no Continente e Ilhas Adjacentes», in As Eleições de Outubro de 1969, (coord. de João Palma-Ferreira), p. 651; AA. VV., As Eleições de Outubro de 1969 - Testemunhos, Ferreira do Alentejo, Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, 1999, pp. 18-19.

32-António Reis, «Entre a Raiva e a Esperança», in AA. VV., As Eleições de Outubro de 1969 - Testemunhos, p. 29.

33-É o que sugere Mário Soares em Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, p. 657.

34-Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado. Depoimento sobre os Anos do Fascismo, pp. 656-657.

35-Cf. Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», p. 22.

36- Cf. Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), pp. 21-22, p. 145, p. 149; cf.  Joaquim Magalhães Mota, «“Ala Liberal”», in Dicionário de História do Estado Novo, (dir. de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito), vol. 1, Venda Nova, Bertrand, 1996, p. 32.

37-Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 490.

38-Mário Soares, «Significado Histórico das Eleições de 1969», in AA. VV., As Eleições de Outubro de 1969 - Testemunhos, p. 77.



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