Geoff Pick, da prefeitura de Londres, exibe um exemplar da Magna Carta, para muitos, o mais importante documento da História da Inglaterra (Foto: Carl Court/AFP) |
CERTIDÃO DE
IGUALDADE
A Magna
Carta, o documento que há 800 anos, na Inglaterra, estabeleceu que ninguém está
acima das leis, nem o rei.
Escrita em
latim num pergaminho de couro, nos arredores de Londres, há 800 anos, a Magna
Carta é mais avançada em termos de direitos humanos e progresso social do que
essas toscas experiências políticas em voga atualmente no mundo.
Se aplicada na
Venezuela de Nicolás Maduro, na Argentina de Cristina Kirchner ou na Rússia de
Vladimir Putin, a Magna Carta de 1215 seria um choque de democracia.
“Nenhum
homem será aprisionado ou privado de sua propriedade, ou tornado fora da lei,
ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou
mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou
pela lei da terra. A ninguém recusaremos ou postergaremos direito ou justiça”,
lê-se no trecho de influência mais perene.
A essência
do documento, que em 15 de junho completará oito séculos, foi, pela primeira
vez na história, impor limites a um monarca, no caso o rei João. O acerto
inicial beneficiou apenas os barões do reino. Mas seu escopo foi ampliado com o
tempo para todos os habitantes da Inglaterra. A Magna Carta serviu de base para
as democracias modernas ao dar vida ao que hoje se conhece por “estado de
direito”. Nenhum monarca, czar ou caudilho pode colocar-se acima das leis dos
homens.
O rei que se
viu obrigado a deixar esse legado democrático foi um símbolo máximo do
autoritarismo. Em 1199, com a morte de seu irmão Ricardo Coração de Leão, João
herdou o trono. Como Ricardo havia indicado seu sobrinho Artur para a cadeira,
João o matou. Segundo um cronista daquele tempo, antes Artur foi mutilado.
Outro diz que João esmagou a cabeça do sobrinho com uma pedra e jogou o corpo
no rio. O ano era 1203 e Artur tinha 16 anos.
João também
tomava para si as mulheres e filhas dos senhores feudais, que eram obrigados a
se sujeitar à humilhação como prova de lealdade. Matilda de Briouze, a mulher
de um barão que ousou dizer não, foi presa com o filho em um castelo, sem
comida. Foi encontrada morta depois de cravar os dentes na bochecha do garoto,
que sucumbira de fome.
Na Baixa
Idade Média (séculos XI ao XV), o reconhecimento da autoridade de um rei, acima
dos senhores feudais, foi um enorme avanço social e económico. Um monarca com
poder incontestável sobre determinado território tornou o comércio mais seguro
e diminuiu a violência das insurreições populares. João, porém,
abusou de sua autoridade, cobrando impostos extorsivos para financiar suas
guerras e punindo cruelmente quem se recusasse a pagar. Revoltados, os barões
tomaram Londres. Acuado, o rei aceitou todas as demandas. Cópias do pergaminho,
com o selo do monarca, foram enviadas para ser lidas nos púlpitos das igrejas.
Entre as
determinações da Magna Carta consta que os impostos não poderiam mais ser
criados sem o consentimento dos pagadores de impostos. Além disso, as viúvas
dos barões não poderiam mais ser obrigadas a se casar com quem o rei determinasse.
Prisões arbitrárias não seriam mais toleradas, e todos teriam direito a um
julgamento correto. Um conselho de 25 homens foi formado para supervisionar as
atitudes do monarca.
Um mês
depois de aceitar os termos da Magna Carta, o rei João voltou atrás e recorreu
ao papa para que a cancelasse. João morreu de disenteria na guerra interna
contra os barões do reino.
As ideias
centrais do documento foram um marco na evolução das sociedades e inspiraram
muitos outros eventos libertários. A Revolução Gloriosa, de 1688, foi um
exemplo. Os ingleses, 473 anos depois da Magna Carta, rebelaram-se contra Jaime
II, que foi afastado pacificamente, sem o banho de sangue que se viu na
Revolução Francesa.
Em Paris, o
objetivo era destruir o sistema para construir outro, novo e perfeito. Para os
franceses, só isso caracterizaria uma revolução.
O político irlandês Edmund
Burke (1729-1797), o primeiro e talvez o maior crítico da Revolução Francesa,
desmontou facilmente o argumento. Para Burke, que previu com anos de antecedência
a degeneração para o terror do experimento parisiense, a superioridade da
Revolução Gloriosa não estava em ter ocorrido mais de 100 anos antes nem em ter
sido incruenta, mas em ter respeitado as “complexidades da natureza humana e da
vida em sociedade”.
No século
seguinte, a independência americana foi herdeira da Magna Carta, ecoada na
Quinta Emenda da Constituição: “Ninguém pode ser privado de sua vida, liberdade
ou propriedade sem o devido processo legal”.
Em 2008, um juiz americano citou o
texto medieval em sua defesa, de que os detidos em Guantánamo tivessem direito a
julgamento em tribunal e não pela Justiça Militar.
Uma cópia da
Magna Carta vai ser exposta em Brasília em julho. Findas as celebrações, ela
volta a Londres. Perfeito seria se seus princípios ficassem.
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