Devemos muito aos Árabes. Foram eles que asseguraram a passagem do testemunho científico desde a Antiguidade Grega, quando começou a ciência, até ao fim da Idade Média, quando começa a irromper a ciência experimental.
Num número especial do final do milénio passado a revista “National Geographic” escolheu as cidades representativas dos finais (ou, se se preferir, inícios de milénio). E lá vem Alexandria, a cidade de ponta na altura do nascimento de Cristo (foi em Alexandria que a herança grega se espraiou ao transpor o Mediterrâneo). Vem Córdoba, a cidade mais desenvolvida no ano 1000 (basta visitar essa cidade andaluza, ou a cidade vizinha de Granada, para confirmar que os Árabes estiveram aí no seu esplendor). E vem também Nova Iorque, a cidade escolhida para símbolo da civilização no ano 2000 (a cidade que alguns árabes fanáticos atacaram em 11 de Setembro de 2001). Sem Córdoba, não se podia ter passado directamente de Alexandria para Nova Iorque. O ano 1000 foi árabe e, sem esse ano, não se podia ter ido do ano um para o ano 2000.
Não há hiatos na evolução civilizacional e cultural da humanidade (é algo redutor falar de civilização ocidental, pois não houve dois Aristóteles nem dois Galileus). O engenheiro electrotécnico e historiador de ciência húngaro K. Simonyi, no seu livro K. Simonyi, “Kulturgeschischte der Physik”, Verlag Harri Deutsch, Frankfurt am Main, 1990 (uma monumental história cultural da física, traduzida do húngaro para alemão) mostra um esquema que representa a função “intensidade da criação intelectual” ao longo do tempo em paralelo na ciência e na arte. Dois picos principais são bem nítidos no lado da ciência, precedidos por picos nas artes: o pico dos Antigos Gregos, com Platão, Aristóteles, Arquimedes e Euclides, e o pico da Revolução Científica, com Galileu e Newton, no século XVII, e que teve duas “réplicas” nos séculos XIX e XX (com Faraday e Darwin, primeiro, e Einstein, Bohr, Heisenberg, etc. depois). Mas entre esses picos científicos há longos vales. Os Árabes, quando viveram a sua idade de oiro, asseguraram, de facto, a transição entre os gregos clássicos (nomeadamente entre essa “réplica” do pico científico grego, que foi o helenismo, e cujo expoente máximo foi Ptolomeu) e os renascentistas. Foi um papel de charneira indispensável.
O matemático e filósofo inglês Bertrand Russel defendeu a ideia de que o papel principal dos Árabes na história da ciência e da civilização foi precisamente esse, o de intermediário entre a Grécia Antiga e a Revolução Científica, mas que lhe faltaria o fulgor da grande criação. Mas muitos autores têm defendido, por outro lado, a tese de que o papel árabe na ciência foi não só de transmissão mas também de criação, por vezes de excelente criação. Têm boas razões para isso. A palavra algarismo é árabe, assim como a palavra algoritmo. O mesmo acontece com a palavra álgebra. O líder palestiniano Yasser Arafat disse, algo irritado e com algum exagero, à jornalista italiana Oriana Falacci (os dois já falecidos) que foram os Árabes que criaram os números e a matemática. O zero é, na Europa, um contributo árabe (a palavra árabe é sifr, vazio, que em português deu cifra). Os Árabes distinguiram-se, entre os séculos V e XV, no período que já alguém chamou “noite de dez séculos”, além da Matemática, nas áreas da Física (em particular, a Óptica), da Química (ou melhor, Alquimia, outra palavra árabe) e da Medicina. Para esses avanços foram essenciais o diálogo cultural e a tolerância religiosa que, em geral, souberam manter. Escrevem os historiadores de ciência franceses Paul Benoit e Françoise Micheau (in Michel Serres, coordenação, «Elementos para uma História das Ciências”, vol. I, “Da Babilónia à Idade Média”, Terramar, 1995) a propósito da ciência árabe:
“A expressão [ciência árabe] pode ser considerada abusiva: uma grande parte dos homens que a praticaram não eram árabes. Mas falar de ciência islâmica tem uma pesada ambiguidade, a palavra dá à actividade científica uma conotação religiosa que ela não tem, os sábios são muçulmanos, mas também cristãos ou judeus. O traço comum que dá uma enorme unidade a estas actividades científicas é simples. A língua, principal factor de unidade, pode legitimamente servir para caracterizar a ciência dos países do Islão na Idade Média, ela é o veículo das ideias, dos conceitos, dos saberes (...) Os primeiros textos científicos em língua árabe são traduções: do grego, do siríaco, do sânscrito, do pélvi, que retomam, amplificando, a actividade dos centros helenistas e persas.”
A língua árabe foi, sem dúvida, ao longo de séculos uma língua de ciência e cultura científica. O capítulo de Benoit e Micheau intitula-se “O intermediário árabe?”, repare-se na interrogação. E a questão inicial é respondida no fim:
“Os Árabes foram muito mais do que simples intermediários. A sua ciência não deve ser considerada como um retransmissor, mas como um tempo na história de uma ciência euro-asiática”.
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