Anunciação. Bento Coelho (c. 1655) |
Anunciação. Josefa de Óbidos (1676) |
Visitação. Vasco Fernandes (1506-1511) |
Visitação. António Manuel da Fonseca (1855) |
Visitação. Maria Aurélia Martins de Sousa (Séc. XIX-XX) |
Natividade. Paula Rego (2002) |
Adoração dos Pastores. Gregório Lopes (Séc. XVI, 2.º quartel) |
Adoração dos Pastores. Bento Coelho da Silveira (Séc. XVII, 2.ª metade) |
Adoração dos Reis. Vasco Fernandes, Francisco Henriques (1501-1506) |
Circuncisão. Oficina de José do Avelar Rebelo (Séc. XVII) |
Repouso na Fuga para o Egipto. André Gonçalves (Séc. XVIII) |
Menino
entre os Doutores. José do Avelar Rebelo (c. 1635)
|
O mistério do
Natal encontra-se expresso com profundidade poética e teológica nas palavras do
«Prólogo» do Evangelho de São João: «No começo a Palavra já existia: a Palavra
estava voltada para Deus e a Palavra era Deus. [...] E a Palavra fez-se Homem e
habitou entre nós.» (1,1.14) O Verbo/Palavra, que é o Filho no seio da
Santíssima Trindade, armou a Sua morada entre nós, fazendo-se carne da nossa
carne, homem para a morte como nós. É ainda São João que nos refere a
finalidade desta vinda de Deus, em Jesus: «Ninguém jamais viu a Deus: quem nos
revelou Deus foi o Filho único que está junto do Pai,» (1,18) Dar a conhecer o
Pai, o Seu rosto bondoso e compassivo, o Seu coração cheio de verdade, é a
razão para que o Filho venha ao nosso encontro e fale na nossa linguagem.
Conhecer o Pai é a vida eterna: «a vida eterna é esta: que Te conheçam a Ti, o
único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo». (João 17,3) Assim
sendo, mostrar o Pai, transparente desde a Sua carne, do nascimento à morte na
cruz, para fazer os homens participantes deste amor e da vida eterna, é a
motivação do mistério do Natal de Jesus.
A manifestação
do Senhor que faz Sua a nossa carne é uma realidade inaudita na história.
Podemos compreender melhor esta novidade imensa se compararmos, por exemplo, o
acontecimento cristão com o pensamento clássico grego em relação à epifania das
divindades. Numa passagem significativa da Ilíada de Homero, em que se adensa dramaticamente a guerra
entre os Aqueus e os Troianos pela entrada em cena de Aquiles e dos deuses do
Olimpo, Hera, esposa de Zeus, indica que «tremendos são os deuses quando
aparecem às claras». (XX, 132) Em contraposto ao pensamento grego, o Deus
bíblico, ao aparecer às claras em Jesus de Nazaré, revela-Se não tremendo e
terrível na Sua magnificência e poder, mas pequeno e próximo do ser humano,
revelando o mistério de Deus e do homem e a vontade real de fazer este
«participante da natureza divina». (2 Pedro 1,4)
O que São João expressava através das
palavras da teologia e do silêncio podemos encontrar igualmente através das
narrativas dos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas. Foi sobretudo aí que os
artistas se basearam para representarem o mistério do nascimento de Jesus
Cristo, embora não possamos deixar de mencionar os evangelhos apócrifos, as
homilias de São Bernardo, as Meditationes do
Pseudo-Boaventura, as Revelationes de
Santa Brígida da Suécia, e, sobretudo, a Legenda Aurea de
Voragine. A Sagrada Escritura é, sem dúvida, a fonte principal de inspiração
dos artistas que a tomam como uma espécie de «dicionário imenso» (P. Claudel) e
de «atlas iconográfico» (M. Chagall) para as suas obras. Nos textos bíblicos
vemos relatados os nove episódios principais relativos à Natividade e à
infância de Jesus que foram representados pela arte: a Anunciação, a Visitação,
a Natividade, a adoração dos pastores, a adoração dos Magos, a circuncisão, a
apresentação no Templo, a fuga para o Egipto e o encontro do Menino entre os
doutores em Jerusalém. É sempre o mistério do Verbo feito carne, em
visibilidade histórica e salvífica, que é expresso pela arte e que veio a
possibilitar a arte cristã.
A partir do século III, nos testemunhos
ainda incipientes de uma arte cristã, encontramos já a representação dos temas
relacionados com o ciclo da Natividade. É sobretudo a cena dos Magos que
aparece a decorar as paredes das catacumbas romanas e os sarcófagos. No século
IV, a Natividade toma-se, efectivamente, um dos temas mais frequentemente
representados na arte religiosa, como o demonstra o díptico em marfim e pedras
preciosas do século V conservado na Duomo de Milão ou os mosaicos do
Baptistério de Veneza. A iconografia da Natividade centra-se, então, sob
influência dos modelos bizantinos, numa gruta utilizada como abrigo para os
animais, com Maria deitada, José absorto num ângulo, ao longe os anjos que
trazem o anúncio aos pastores, e os Magos. O centro da composição é constituído
pelo Menino Jesus, envolto em faixas, como um morto, deposto num berço em forma
de sarcófago, a preanunciar simbolicamente a Sua morte e ressurreição. A
representação é enriquecida com particulares traços dos evangelhos apócrifos,
como o banho do Menino, a sublinhar a realidade da Encarnação do Verbo,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Para o imaginário da Idade Média será
determinante a iniciativa de São Francisco de Assis de fazer reviver
dramaticamente o nascimento de Belém, convidando todo o povo de Greccio (Rieti)
a adorar a Hóstia consagrada colocada numa manjedoura em tomo da qual estava um
boi e um jumento. O costume espalhou-se por todas as catedrais, igrejas e
mosteiros na Europa medieval, começando a ser montado também na casa dos reis e
nobres desde o Renascimento, atingindo o auge, no contexto português, no século
XVIII, a partir do qual se alicerçou essa tradição em cada casa. Devido ao
influxo da espiritualidade franciscana, mas também das revelações de Santa
Brígida da Suécia, a iconografia da Natividade mudou o seu esquema, sendo
colocado em primeiro plano o Menino, frequentemente no chão, a sublinhar a
humanidade, enquanto Maria, José, os pastores e os Magos encontram-se de
joelhos, em posição orante diante da criança.
Em Portugal, apesar da presença de uma
arte cristã desde os primeiros tempos, no que diz respeito aos temas que fazem
o ciclo da Natividade só os encontramos, em primeiro lugar, no românico e no
gótico, esculpidos nos tímpanos dos portais principais das igrejas ou adornando
capitéis das colunas que sustentavam os templos. Um caso paradigmático é o dos
capitéis da Igreja de Leça do Balio, do século XIV, que são o mais completo
conjunto figurativo de um templo românico português. Num dos capitéis figura a
adoração do Menino: a Virgem segura o Menino, encontrando-se um pastor
imediatamente ao lado, apresentando a sua oferta. Sucedem-se então os reis
Magos com as oferendas na mão. No campo da pintura figurativa, por seu lado,
não existe em Portugal um único exemplo que possa ser atribuído ao românico,
mesmo que tardio, e escassos ao gótico. Este facto não se deve certamente a uma
não existência pictórica de cenas ligadas ao ciclo da Natividade de Jesus, mas
tão-somente a uma ausência de testemunhos entre nós devido, provavelmente, ao desgaste
e desaparecimento de obras com o passar dos séculos. O século XV será marcado
pela presença de Nuno Gonçalves e da sua oficina, que se afirma com uma plena
autonomia de valores em relação à pintura que em Portugal se fez no decurso do
Quatrocentos.
Na viragem do século XV para o século
XVI inaugura-se no campo da pintura portuguesa um período áureo, tanto na
quantidade como na qualidade da produção nacional. Numa nova conjuntura
nacional, possibilitada pelos Descobrimentos e pelo desejo de uma renovação
estética, são produzidos ou renovados os retábulos de algumas sés portuguesas
ou conventos, que proliferam. Esses retábulos de sabor renascentista são
produzidos sobretudo nos primeiros decénios do século XVI, como os das
Catedrais de Viseu e de Lamego, da autoria de Vasco Fernandes, o da Igreja do
Convento de São Francisco, em Évora, empreitada de Francisco Henriques, ou
ainda o retábulo de São Bento, obra atribuída a Gregório Lopes. Nestes
retábulos, a representação pictórica do ciclo da Natividade é uma constante,
espelhando a forte presença da devoção ao Senhor e a Maria, sua Mãe.
A partir de 1550
até cerca de 1620, Portugal sintonizou a sua linguagem pelos novos cânones do
Maneirismo vindo de Itália. O impacto do Concílio de Trento será significativo
nas artes, pois se por um lado as dinamiza e apoia, por outro introduz rígidos
padrões iconográficos a fim de que sejam expressão da fé verdadeira e veículo
de catequização num tempo de escassa alfabetização. Os retábulos renascentistas
das igrejas já não expressam a mensagem de acordo com o sentido estético
moderno, e, nesse sentido, serão substituídos por outros de sabor maneirista. O
ciclo da Natividade é, então, um dos grandes temas privilegiados da pintura na
medida em que expressava o centro da fé que é o mistério da Encarnação do
Senhor, eixo em tomo do qual se vem a compreender o mistério da Igreja, dos
Sacramentos, do Homem e da sua salvação. O decoro impõe, agora mais do que
nunca, que as roupas escondam o corpo e até o Menino no Presépio deve figurar,
ainda que desnudo, de um modo que não ofenda os ideais.
Os temas mais representados relativos à
Natividade e à infância de Jesus são, sobretudo, a Anunciação, a adoração dos
pastores e a dos Magos como momentos fulcrais deste ciclo enquanto decisivos
pela densidade teológica e pela piedade que suscitam. Menos representado, no
entanto, será o tema da circuncisão do Menino - pelas razões de decoro acima
mencionadas - mas também o da fuga para o Egipto e o do encontro do Menino no
Templo entre os doutores. Dentro da corrente maneirista devemos mencionar
António Campelo que, apesar de uma escassa produção, representou a nível
pictórico duas belíssimas Adorações dos Pastores, ou Simão Rodrigues,
verdadeiro fa presto, que deixou importante
obra por todo o país.
Os séculos XVII e XVIII serão marcados,
em geral, a nível estético pelo Barroco. Os retábulos portugueses, em verdade,
a partir de finais do século XVII, albergam uma estrutura escalonada a que se
convencionou chamar de "trono". É o espaço para a adoração
eucarística, promovida e renovada com o Concílio Tridentino. Mas a pintura de
temática religiosa permanece, exposta nas paredes dos templos e nas casas
religiosas com o intuito de catequizar pela cor e pelo exemplo o povo crente.
Os temas religiosos continuam a dominar o horizonte dos artistas e dos mecenas
que lhes encomendam trabalhos, e o ciclo na Natividade é continuamente recriado
seguindo os padrões iconográficos já mencionados dentro de uma estética
renovada. André Reinoso, Bento Coelho ou Josefa de Óbidos marcam o século XVII,
enquanto André Gonçalves, Francisco Vieira de Matos (Vieira Lusitano), Pedro
Alexandrino de Carvalho ou Domingos António de Sequeira, o século XVIII.
Os séculos XIX e XX são marcados por
várias correntes estéticas e pelo abandono progressivo dos temas religiosos na
pintura. A Revolução Francesa (1789), o liberalismo e o laicismo que dela
decorrem, levaram a que os artistas se exprimissem não apenas dentro das
temáticas religiosas, mas também dentro de outros temas e a partir de outras
sensibilidades estéticas. Os episódios referentes ao ciclo da Natividade, no
entanto, não são esquecidos pela forte carga humana que evocam e pela ternura e
encanto que expressam. Assim, não podemos esquecer nomes como António Manuel da
Fonseca, Aurélia de Sousa, Almada Negreiros, Jorge Barradas, mas também, e
ainda entre nós, Emília Nadal, Sousa Araújo e Paula Rego, entre outros.
O ciclo da Natividade foi um dos
principais temas representados pelos pintores portugueses ao longo dos séculos
como testemunho eloquente deste amor português à Natividade do Senhor e à Sua
Mãe. Neste livro não estão contempladas, dada a profusão de obras de excelente
qualidade, todas as pinturas, nem talvez as mais significativas do contexto
português. No entanto, a selecção que ousámos parece-nos ampla e intensa, dando
também a conhecer alguns dos autores, estilos e iconografias. O nosso desejo é
suscitar olhares contempladores da pintura religiosa como arte que diz o
indizível.
As imagens da Natividade possuem um
forte significado espiritual e teológico. Num famoso discurso, o Papa São Leão
Magno convida a alegrarmo-nos pelo nascimento do Senhor enquanto o Natal é «uma
alegria comum». É toda a humanidade, santa e pecadora, que aflora na
representação da Natividade na arte. Todos estamos representados neste
verdadeiro teatro do mundo, com a nossa história, as angústias e esforços.
Seguindo o método de oração
de Santa Teresa de Jesus, que sugeria no seu Caminho de Perfeição
fazer-se ajudar na oração por uma imagem do Senhor, representado na Sua
humanidade ou aquele de Santo Inácio de Loyola, que nos Exercícios
Espirituais recomendava fazer preceder cada meditação espiritual de uma
"composição do lugar", imaginando nos mínimos detalhes a cena
evangélica, possamos transformar a visão destas obras de pintura portuguesa em
ocasião de oração e de contemplação.
Tiago Alexandre Asseiceira
Moita
In O Mistério do Natal na pintura portuguesa, ed. Paulus, 2009
In O Mistério do Natal na pintura portuguesa, ed. Paulus, 2009
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