A primeira revolução antitotalitária
No dia 23 de Outubro de 1956, 50.000 estudantes concentram-se em Budapeste, junto da estátua do poeta nacional Sandor Petöfi, para aprovar um caderno de 15 reivindicações, entre elas, o regresso ao poder do comunista reformador Imre Nagy.
Na véspera, uma assembleia de 4000 estudantes
elaborara o texto e convocara uma "manifestação silenciosa para exprimir a
profunda solidariedade com os acontecimentos da Polónia", em que um
movimento popular forçara a substituição da velha guarda estalinista pelo
comunista reformador Wladyslaw Gomulka.
Proibida e depois autorizada, a concentração depressa
reúne 50 mil pessoas. Juntam-se-lhe operários e soldados. Já são 200 mil. Os
estudantes arvoram bandeiras nacionais com um rasgão no meio, de onde foi arrancado
o símbolo do partido comunista e a estrela vermelha. Um actor declama um poema
de Petöfi, herói da revolução nacional de 1848: "Perante Deus, juramos que
nunca mais seremos escravos." Trazido de casa, Nagy tenta moderar os
manifestantes. Em vão.Derrubam a estátua de Estaline. Dirigem-se à rádio para ler o seu documento. Os agentes da AVH (polícia secreta) recebem-nos a tiro. Parte dos soldados chamados em reforço passam-se para o lado dos manifestantes. Durante a noite, operários ocupam fábricas, apoderam-se das armas da milícia, assaltam depósitos de armamento. Começa a caça aos AVH e os primeiros ataques a soldados russos.
Tomado de pânico, o líder comunista, Erno Gerö, pede a
intervenção das tropas soviéticas e, ao mesmo tempo, nomeia Nagy primeiro-ministro.
No dia seguinte, Janos Kadar, outro recém-reabilitado - foi preso e torturado
por "titismo" - assume a direcção do partido, com a bênção de dois
altos dirigentes soviéticos, Suslov e Mikoian, enviados à pressa de Moscovo.
Tudo em vão.
A 24, já todo o país está levantado.
A greve generaliza-se e formam-se conselhos revolucionários por todo o lado,
que rapidamente se armam e tomam o poder. Há um clima de guerra civil, com uma
feroz perseguição aos AVH, que são massacrados, depois de, a 25, terem voltado
a disparar sobre a multidão, matando uma centena de pessoas. A maioria do
exército e grande parte dos comunistas aderem à insurreição. A revolta torna-se
revolução.
O seu programa é claro:
eliminação dos estalinistas, dissolução da polícia secreta, aumento de salários
e, sobretudo, a independência nacional - denúncia do Pacto de Varsóvia,
proclamação da neutralidade, recurso às Nações Unidas.
As raízes
"A insurreição não foi premeditada e, de facto,
surpreendeu os próprios participantes", dirá um ano depois o relatório do
inquérito da ONU. Mas tem antecedentes:
Estaline morre em 1953, abrindo na Hungria uma fase de
intensa luta entre o estalinista Matyas Rakozi, chefe do partido, e o
primeiro-ministro, Imre Nagy, que defende um socialismo nacional e acaba por
ser expulso do partido em 1955.
Em Fevereiro de 1956, Khrustchev inicia no XX
Congresso do Partido Comunista da URSS um processo de desestalinização que cria
grandes expectativas. No fim de Junho de 1956, a revolta operária de Poznan, na
Polónia, gera um movimento nacional que leva ao poder Gomulka, forçando a mão a
Moscovo.
Na Hungria, acumulavam-se os sinais. Em Março fora
reabilitado o antigo dirigente comunista Lazlo Rajk, vítima de um dos últimos
grandes processos estalinistas e enforcado em 1949. Cresce a exigência de democratização. Até ao
princípio de 1953, tinham sido executadas duas mil pessoas e internadas 200
mil. As reivindicações de 23 de Outubro há muito vinham sendo formuladas por um
influente grupo de intelectuais, o Círculo Petöfi: fim do estalinismo e da
tutela soviética.
A tragédia
Imre Nagy era um comunista reformador que pretendia,
como Gomulka, estabelecer uma via nacional para o socialismo e manter boas
relações com Moscovo. Mas a situação é incontrolável e ele assume as exigências
do movimento.
A 27
constitui um governo pluripartidário, pondo termo ao regime de partido único. A
28, anuncia um acordo com Moscovo e dá ordem de cessar-fogo. Rejeita a
qualificação da insurreição como "contra-revolucionária" e
atribui-lhe o objectivo de garantir a independência e "fazer progredir a
democratização da nossa vida nacional". "São os graves crimes da
época precedente que desencadearam este grande movimento."A 30, as tropas
soviéticas começam a retirar-se. A euforia instala-se. A revolução parecia ter
alcançado os seus objectivos. A 1 de Novembro, depois dos russos terem
recomeçado a enviar tropas, Nagy passa o Rubicão e anuncia a neutralidade da
Hungria, denunciando o Pacto de Varsóvia. Apela ao secretário-geral da ONU.
A
direcção soviética esteve aparentemente dividida. A criação de "uma nova
Finlândia" terá sido encarada. Há uma primeira declaração do Kremlin que
ambiguamente o admite. Mas o que estava em jogo não era apenas a Hungria, mas o
risco de contágio de toda a Europa de Leste e a desagregação do Pacto de
Varsóvia. A partir de 30 de Outubro, a decisão de Moscovo está tomada.
Dois
factores jogam a seu favor. Primeiro, os Estados Unidos permanecem fiéis ao
mapa de Ialta. O Presidente Eisenhower disse ter "o coração com o povo
húngaro". A Rádio Europa Livre (americana) não cessou de apelar à
radicalização, criando a ilusão de que uma intervenção ocidental seria
possível. Ainda a 31 de Outubro denuncia a tibieza do Governo Nagy e pede aos
húngaros que não deponham as armas e ataquem os russos. Entretanto, o
embaixador americano em Moscovo tranquilizava o Kremlin, dizendo que os EUA não
consideravam a Hungria um "aliado".O segundo factor é a crise do Suez. A última aventura imperial da França e da Grã-Bretanha no Médio Oriente passa a concentrar as atenções internacionais, deixando as mãos livres a Moscovo na Hungria. Divididos, os aliados ocidentais também não têm qualquer possibilidade de impor uma negociação à Rússia sobre uma "neutralização" da Europa Central, com concessões equilibradas dos dois campos, anotou André Fontaine.
Na
madrugada de 4 de Novembro, os tanques russos reentram em Budapeste. O
secretário-geral do partido, Janos Kadar, desaparecido a 1, reaparece com os
soviéticos. O último apelo da União dos Escritores - "Salvem a Hungria!
Socorro!" - nunca teve resposta. A repressão é brutal: 20 mil húngaros
mortos, contra 720 soldados soviéticos. Exilaram-se mais de 200 mil pessoas. A
12, reina na Hungria a paz dos cemitérios.
Balanço
Para o jornalista e historiador François Fejtö - húngaro naturalizado francês e durante décadas responsável na AFP pela cobertura do mundo comunista - a insurreição de Budapeste foi "a primeira revolução antitotalitária".
Para o jornalista e historiador François Fejtö - húngaro naturalizado francês e durante décadas responsável na AFP pela cobertura do mundo comunista - a insurreição de Budapeste foi "a primeira revolução antitotalitária".
Os
húngaros esperavam vencer: "É o lado sobrenatural da revolução".
Contavam com outra reacção dos ocidentais. Mas triunfaram numa perspectiva
histórica.
"A revolução
de 1956 pode ser considerada como a antecipação de uma situação que acabou por
ser a de toda a Europa Central. Anunciou o desabamento do comunismo
nestes países, e
mesmo na URSS", conclui.
O mesmo pensa o
historiador húngaro Miklós Mólnar, testemunha dos acontecimentos, para quem
1956 marca uma viragem irreversível.
“Vitória
de uma derrota: Budapeste 1956" é o título do seu livro sobre a revolução
húngara.
23.10.2006 -08:27 Por Jorge Almeida Fernandes, (PÚBLICO)
23.10.2006 -08:27 Por Jorge Almeida Fernandes, (PÚBLICO)
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