No período
da I República, entre a sua criação, a 5 de Outubro de 1910, e a sua queda, a 28
de Maio de 1926, a sociedade portuguesa vai revelar um grande protagonismo
político e cultural.
Portugal, desde 1820 (salvo a interrupção no período
miguelista, de 1826 a 1834), vivia em regime parlamentar. A República faz-se não
para acabar com esse regime, mas sim para eliminar a figura do rei, que do ponto
de vista republicano era a causa da degradação moral da Nação. Refira-se, a
título de exemplo, que nas palavras de Basílio Teles, famoso republicano, a
monarquia tinha sido "a incompetência, o impudor, a opressão". A par do rei, os
republicanos irão combater o "clericalismo", pois, segundo estes, os sacerdotes
"eram símbolos do obscurantismo e opositores ao uso da livre razão". A grande
maioria dos republicanos estava filiada na Maçonaria, organização semi-secreta,
com ritos de iniciação e organização interna muito elaborada, para quem Deus era
"o grande arquitecto", representado por um triângulo com um olho no seu
interior. Apêndice importante da Maçonaria era a Carbonária, organização civil
armada (na qual entravam também militares mas a título individual), sem
preocupações esotéricas, destinada a servir de braço armado do Partido
Republicano.
Entretanto, as ideias republicanas e maçónicas não esgotavam as
propostas de reforma social, que incluíam também ideias socialistas, ou
comunistas - já que por volta de 1910-1915 estas tinham grande proximidade - e
as ideias anarquistas.
Os socialistas pretendiam a transformação da
sociedade através da abolição da propriedade, que passaria para a posse da
sociedade (donde o nome socialismo). As relações familiares, geradoras de
egoísmo familiar, problemas de heranças, etc., seriam substituídas pelo amor
livre, e o Estado, após o período revolucionário, acabaria.
Os anarquistas,
com princípios sociais idênticos, põem a tónica na liberdade, negando todos os
seus símbolos - a religião, a pátria, a escola e a família. A participação nas
eleições é por eles desprezada. Rejeitam a intervenção do Estado nos problemas
sindicais, defendendo, por exemplo, as "associações de socorros mútuos",
afirmando que "a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios
trabalhadores", e são partidários da acção imediata através de atentados aos
símbolos de autoridade. Os anarquistas constituíam, entre o operariado, a força
mais importante e numerosa, dominando os sindicatos (corrente denominada
anarco-sindicalismo). Entre todas estas ideias e práticas ir-se-ão, como é
compreensível, produzir choques, não só verbais - a linguagem utilizada nos
comícios e jornais é agressiva - mas também confrontos físicos e armados. O
pequeno burguês da cidade, bem pensante e de chapéu, convencido de que tinha
feito uma revolução para o bem da Pátria, não cede facilmente às reivindicações
do operário de boné e calças amarrotadas, que o ameaça com greves e lhe lança
bombas. Assim, o Partido Democrático de Afonso Costa - partido hegemónico
durante a República - vai travar uma luta especialmente em duas frentes: contra
a Igreja como instituição, e contra a classe operária organizada em sindicatos
(Afonso Costa tinha a alcunha de racha-sindicalistas), criando-se uma acentuada
instabilidade no país, com greves e atentados bombistas, ao que os Governos vão
ripostar com prisões e encerramento das sedes sindicais e jornais. Aliás, uma
das primeiras medidas da República seria a de criar uma "Guarda Republicana"
para defender o regime, isto atendendo a que a Polícia não dispunha de efectivos
e armamentos para o fazer, e o Exército era "pouco fiel". A Guarda Republicana
deveria ter uma postura imparcial, evitando imiscuir-se em problemas internos, o
que foi esquecido muitas vezes. Paralelamente, a par dessas duas "frentes"
principais, vai surgir uma outra: a luta contra os republicanos que pretendessem
uma pacificação do país através de medidas restritivas da liberdade e do
parlamentarismo.
Como episódios mais marcantes e notórios destas lutas
poderemos falar de várias greves gerais reprimidas violentamente e a revolta de
14 de Maio de 1915, que se destinou a restabelecer a República (o Presidente
Pimenta de Castro havia levado a cabo, quatro meses antes, um golpe de Estado
"palaciano" para retirar o poder ao Partido Democrático), a qual causou centenas
de mortos e feridos.
Nessa situação as forças tradicionais, monárquicas e
católicas, iriam também reagir: por um lado, através de intentonas militares,
chefiadas sobretudo por Paiva Couceiro, como as invasões do Norte de Portugal em
1911 e 1912. A um nível mais teórico surgiu a ideologia apoiada na revista "A
Nação Portuguesa", fundada em Coimbra, em Abril de 1914. Os defensores desta
teoria, como António Sardinha, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e outros,
defendiam uma monarquia na qual o rei tivesse um poder efectivo, nomeando os
seus ministros livremente, isto é, sem estar sujeito à composição do Parlamento,
uma política firmemente nacionalista; isto enquanto faziam a crítica ao regime
parlamentarista e propunham a representação corporativa e regional, bem como um
lugar apropriado para a Igreja Católica. Os integralistas atacam os
"estrangeiros do interior" e os "iberistas" (partidários da união política de
Portugal e Espanha num só país). As ideias políticas do Integralismo Lusitano
irão influenciar Salazar, o qual, entretanto, rejeita a ideia - que para os
integralistas era básica - de restauração da monarquia.
No campo artístico, a
República é quase contemporânea do Manifesto Futurista, escrito por um italiano,
Marinetti, em 1909, manifesto esse que defende: a) desprezo pelo passado, para
que de tal desprezo nasça a vontade de criar e construir o futuro; b) ódio aos
museus, às academias, aos professores e a tudo o que é tradicional, clássico,
pedante, estreito, estacionário e obscuro; c) amor à velocidade, à liberdade, à
energia, ao perigo, à força física e à violência; d) desprezo do sentimentalismo
e do luar; amor à vida frenética e moderna; e) desprezo de toda a forma de
plágio; veneração da originalidade. Este manifesto, pelo seu altivo desprezo
pela ordem estabelecida, anuncia claramente um mundo diferente.
Em Portugal
o seu eco foi pouco posterior, encontrando-se a sua expressão teórica na revista
"Orpheu" (figura mitológica da antiga Grécia, que, segundo a lenda, tocava uma
doce música para domar as feras) e isto muito embora dele só tenham sido
publicados dois números, em Março e em Julho de 1915. Menos radical, entretanto,
que os seus pais espirituais, declarava erguer-se "não contra o que há de bom no
classicismo e no romantismo, mas sim contra o que se mascara apenas com o sinal
externo da perfeição". O grupo de artistas que se reúne à volta de "Orpheu"
incluía os pintores Amadeo de Souza-Cardoso, que, nascido em 1887, viria a
falecer vítima da pneumónica em 1918, e Guilherme Santa-Rita, nascido em 1889 e
falecido em 1918; o poeta Mário de Sá-Carneiro nascido em 1890 e que viria a
suicidar-se em Paris em 1916 - um adolescente que nunca chegou a ser adulto,
marcado pela perda da mãe aos 2 anos e da avó aos 9 anos; Almada Negreiros,
nascido em 1893, pintor, escritor e poeta, que iria escrever o famoso "Manifesto
Anti-Dantas", sátira brutal contra a superficialidade e o academismo; e Fernando
Pessoa, nascido a 1888, sob um dos seus heterónimos. Um dos motivos do escândalo
causado por esta revista foi a publicação no seu segundo número de um poema de
Ângelo Lima, que estava internado no manicómio de Rilhafoles.
As
Consequências Económicas e Sociais da Grande Guerra
Em 1914,
iniciou-se uma terrível guerra no Centro da Europa, a qual viria a envolver
quase todas as nações europeias. Portugal, embora não directamente envolvido,
acabou por entrar na guerra, sobretudo por fidelidade à sua velha aliada, a
Grã-Bretanha - então a maior potência naval, e por tal motivo indispensável
apoio a quem, como Portugal, tinha um Império tão repartido pelo Mundo. A somar
a isto temeu o Governo vir a perder as suas colónias em África, caso não
entrasse na contenda. A guerra em África começou mais cedo, logo a partir de
1914; a guerra na Europa, para Portugal, só começaria em Janeiro de 1917, data
em que partiu o primeiro contingente português para França. A guerra
propriamente dita teve custos elevados em vidas humanas e mesmo em capitais; mas
também a população civil, embora poupada aos seus horrores - pois a guerra
passava-se muito longe -, iria sofrer os seus efeitos, devido aos ataques
alemães aos navios, impedindo, assim, o reabastecimento em géneros alimentícios,
nos quais Portugal não era auto-suficiente. A carência de géneros provocou a
alta de preços e situações de açambarcamento. O agudizar das tensões sociais
aumentou e verificaram-se vários episódios de saques a mercearias e armazéns,
com dezenas de mortos. As difíceis condições de vida, aliadas aos pesadelos
sofridos nos campos de combate, destruiram a antiga ordem; e, enquanto uns
procuram enriquecer a qualquer custo e outros apenas sobreviver, outros anseiam
por um novo mundo.
A esta luz podem entender-se vários movimentos culturais
e sociais que irão nascer ou afirmar-se com mais força no pós-guerra: o
Saudosismo, o grupo Seara Nova e a fundação do Partido Comunista, isto a par de
um aumento das vocações religiosas.
O Saudosismo foi um movimento defensor
dos valores tradicionais, populares, o neo-romantismo, a comunhão com a
Natureza. As palavras-chave deste estilo eram "sombra", "ausência", "alma". É
interessante notar que este grupo se reunia à volta da revista A Águia,
fundada no Porto logo após a revolução de 5 de Outubro de 1910, e que havia
começado por ser um órgão anticlerical, antijesuíta, que propunha a reforma do
ensino como meio de rejuvenescimento moral e físico; os novos valores do
Saudosismo que a revista passa a defender dizem bem da alteração de mentalidades
entretanto verificada. Fernando Pessoa, que iniciou a sua vida literária
colaborando nesta revista, caracterizou o Saudosismo por: vacuidade, subtileza,
complexidade e por exprimir uma religiosidade nova. O iniciador deste estilo foi
Teixeira de Pascoaes (pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos, 1879-1952),
sendo outros nomes conhecidos os de Guerra Junqueiro, António Correia de
Oliveira, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira, Mário Beirão, etc.
O grupo da
"Seara Nova" vai defender um socialismo cooperativista - a par da apologia da
imaginação criadora, do experimentalismo e da educação pela responsabilidade. A
revista "Seara Nova" foi fundada em 1921 e o seu chefe-de-fila era António
Sérgio, nascido em Damão em 1883, oriundo de famílias de oficiais da Marinha,
sendo seus parceiros Raul Proença, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira e
Aquilino Ribeiro. Os "seareiros" não pretendiam formar-se em grupo destinado a
exercer o poder, mas sim a provocar uma transformação das mentalidades,
"opondo-se ao espírito da rapina da oligarquias dominantes e ao egoísmo dos
grupos, classe e partidos", bem como a "contribuir para formar, acima das
pátrias, uma consciência internacional bastante forte, para não permitir novas
lutas fratricidas".
Em 1921 é fundado o Partido Comunista Português. Fruto da
tomada do poder pelos bolchevistas na Rússia - rebaptizada de União Soviética -,
este partido surge a partir dos movimentos socialista e anarquista, tendo em
relação a estes o carácter distintivo de privilegiar o aspecto organizativo - a
criação de um partido disciplinado e forte - como requisito indispensável para a
tomada do poder.
No campo religioso os constantes ataques dos republicanos,
bem como as misérias criadas pela guerra, levam a uma maior reflexão e
aprofundamento dos valores cristãos, de que são exemplo as obras do último
período de Leonardo Coimbra, as conversões de Alfredo Pimenta e outras figuras
da cena política e social e as aparições de Fátima.
As lutas políticas vão
traduzir-se - entre muitos outros episódios - no assassinato do Presidente da
República, Sidónio Pais, em Dezembro de 1918; nas greves de 1919 dos
Caminhos-de-Ferro, que o Governo combateu obrigando a que o vagão que ia à
cabeça das carruagens que circulavam fosse carregado de grevistas, guardados à
vista por soldados armados, isto para evitar que estas sofressem atentados à
bomba; na "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921, em que vários dos
fundadores da República foram fuzilados por soldados da Guarda Republicana e da
Marinha, etc.
Contra todo este clima de desordem as reacções dos vários
governos que se vão sucedendo, embora violentas, nunca são consequentes; os
encerramentos das sedes da União Operária Nacional, fundada em 1914, ou da
Confederação da União Geral do Trabalho, fundada em 1919, ambas de tendência
anarquista, eram sempre por um período de tempo curto; as suspensões de
professores, como a de Salazar e do "grupo de Coimbra", acusados de apoiar a
"monarquia do Norte" de 1919, também se resumiram apenas a um período de dois
meses, de Março a Abril; o assassino de Sidónio Pais foi libertado durante a
"noite sangrenta"; o promotor que deveria acusar os revolucionários de 1925 fez,
ao invés, a sua defesa política e os réus foram todos absolvidos.
No entanto,
esse relativo apagar das autoridades face às convulsões sociais radica no facto
de os republicanos serem herdeiros espirituais da Revolução Francesa, a qual se
baseava na "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" e na rapidez com que os
governos se alternavam, o que fazia com que as sucessivas políticas fossem
inconsequentes.
É de notar que, enquanto o mundo actual caminha para a
globalização, no período em que estamos, Portugal, embora esteja sujeito à
penetração de ideias do estrangeiro, como o anti-clericalismo, o socialismo, e
até, em parte, o próprio "integralismo lusitano", esse fenómeno não atingia as
proporções a que estamos habituados; é, aliás, interessante notar que uma das
críticas que o grupo da Seara Nova irá fazer aos integralistas é a de que estes,
com as suas ideias nacionalistas, ignoravam o mundo exterior, já bem presente
através do telégrafo e do telefone. Isso explica que as experiências sociais nos
diversos países da Europa de então fossem diversas, pelo que os partidários das
diferentes ideologias podiam ter uma esperança razoável de que, desde que fossem
suficientemente fortes na defesa das suas convicções, a sua ideologia chegaria
ao poder, o que muito contribuiu para a virulência das lutas sociais nessa
época.
Mas todos estes movimentos afectavam, sobretudo, as cidades e vilas
mais importantes, pois a maioria da população era analfabeta, não podendo votar
nem participar em tertúlias literárias. De acordo com o Censo de 1911, 80% da
população vivia no campo, muita dela analfabeta - o analfabetismo rondava os 75%
da população e era maior nas áreas rurais; e pela legislação aprovada pelo
Partido Democrático em 1913 havia sido retirado o voto aos analfabetos,
considerados susceptíveis de seguir acriticamente as opiniões do clero.
Por
isso, para muitos portugueses todas estas diferenças ideológicas se sentiam mais
nos preços e escassez dos produtos do que nos ecos das bombas e das balas, quer
verbais, quer propriamente ditas (será excepção, entretanto, o Alentejo, no qual
há importantes greves dos jornaleiros) e a opção que lhes irá restar será a
emigração para o Brasil, especialmente forte nesse período.
Sociedade Activa e
Contestatária na I República. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto
Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-12].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$sociedade-activa-e-contestataria-na-i>.
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