Nem lembraria ao diabo que um escritor português fizesse passar uma obra sua por uma obra dele. Mas foi o que lembrou a Pedro Almeida Vieira, autor de aplaudidos romances históricos (“Nove Mil Passos”, 2004; “O Profeta do Castigo Divino”, 2005; e “A Mão Esquerda de Deus”, 2009; todos do prelo da Dom Quixote, o último com reedição na Sextante do grupo Porto Editora). Tenho dois exemplares diferentes da mais recente obra dele (ou do diabo, que é, de facto, o narrador), “Corja Maldita” (Sextante, 2010): um deles tem a marca tridentina do demónio, distinguindo-se ainda por apresentar duas folhas rasgadas. A outra possui essas duas folhas, uma das quais é uma autorização à moda do século XVIII. A primeira, bastante rara, só pode ser autografada pelo autor na folha final e não, como é costume, no início.
A expressão “Corja maldita” é um dos vários insultos que foram proferidos contra os jesuítas no século do iluminismo. O mafarrico conta a história da expulsão dos jesuítas que se deu em Portugal a 3 de Setembro de 1759, por ordem do Marquês de Pombal, que quatro anos depois ocorreu na França e nove anos depois também na Espanha, para finalmente ser alargada a todo o mundo cristão com a extinção da ordem criado por Santo Inácio de Loiola em 1773 pelo papa Clemente XIV. A data do decreto pombalino de expulsão não foi escolhida por acaso: passava um exacto ano após o atentado ao rei D. José, cuja responsabilidade moral foi atribuída aos jesuítas. A meio desse intervalo de um ano, teve lugar a tortura e execução públicas do duque de Aveiro, do conde de Atouguia e da família dos Távoras, em Belém (no livro, o demo conta como foi, com pormenores tão realistas como horripilantes). E, na véspera dessa execução, foi preso o padre jesuíta Gabriel Malagrida, que haveria de ser executado por garrote em 21 de Setembro de 1761, num auto-de-fé no Rossio, sendo queimado na fogueira da Inquisição. Ele era culpado de ter dito que o grande terramoto de Lisboa em 1755 tinha sido “castigo divino”. Aliás, o romance anterior de Pedro Almeida Vieira, para o qual o mais recente de certo modo remete, conta a história atribulada desse padre italiano que, depois de andar pelo Brasil, teve o azar de ser a última vítima da fogueira do Santo Ofício. O caso correu a Europa e levou Voltaire a dizer que “um excesso ridículo e absurdo junto ao excesso de horror”.
O novo romance histórico distingue-se dos anteriores do mesmo autor por ter, na forma, maior dose de imaginação, mantendo-se o conteúdo fidelíssimo aos factos. Almeida Vieira tem estudado o século XVIII e os seus escritos denotam um bom conhecimento do período. Além de romance histórico, a omnipresença de Satanás, que em interlúdios dialoga com a alma penada do padre Malagrida (o qual quase cesgota o rol de nomes do diabo que vem no dicionário Houaiss!), torna-o uma peça de literatura fantástica, para além de, talvez acima de tudo, ser um escrito satírico-humorístico, uma paródia literária que também assume o género jornalístico uma vez que o autor, com a ajuda de um “wormhole”, é enviado ao século XVIII para fazer a cobertura em directo dos acontecimentos e escreve artigos que, no estilo, são perfeitamente modernos. Assina peças com o seu próprio nome e com engraçados nomes que são anagramas do seu, Mário Ladeira Pevide e Valério Piedade Mira. Por seu lado, Belzebu, porque viaja com facilidade no tempo e no espaço, consegue dar uma pincelada rápida da nossa situação política actual, comparando em linguagem barroca a marcha vagarosa e cheia de solavancos da carruagem do Marquês por estradas alentejanas a essa carruagem que é Portugal na via do progresso. Vale a pena ler um excerto aqui.
Quem foi, de facto, o Marquês de Pombal? Agustina Bessa-Luís foi autora de uma biografia literária do Marquês “Sebastião José” (Imprensa Nacional, 1981), onde descreve assim o personagem:
“Devia ser homem paciente, como são os que aspiram longe, ou ao céu ou ao poder, que é o céu aos quadradinhos. Não era um santo, Sebastião José. Mas não era medonho como às vezes querem mostrar. (...) Não é possível exercer o poder sem que a crueldade intervenha como uma espécie de elixir da longa vida. Ela tem razões para fazer durar o que parece efémero, e que é o poder dos homens”.
Se os romancistas tentam descrever e interpretar o primeiro-ministro de D. José (e, com isso, perceber melhor a nossa actualidade), o mesmo acontece, embora evidentemente com menor liberalidade, com os historiadores.
“Devia ser homem paciente, como são os que aspiram longe, ou ao céu ou ao poder, que é o céu aos quadradinhos. Não era um santo, Sebastião José. Mas não era medonho como às vezes querem mostrar. (...) Não é possível exercer o poder sem que a crueldade intervenha como uma espécie de elixir da longa vida. Ela tem razões para fazer durar o que parece efémero, e que é o poder dos homens”.
Se os romancistas tentam descrever e interpretar o primeiro-ministro de D. José (e, com isso, perceber melhor a nossa actualidade), o mesmo acontece, embora evidentemente com menor liberalidade, com os historiadores.
O historiador britânico Kenneth Maxwell juntou ao título do seu livro “Marquês de Pombal” (Presença, 2001) o subtítulo “Paradoxo do Iluminismo”. Descreve os feitos do Marquês. Mas não deixa de incluir a descrição do Marquês antes de ele o ser, feita pelo embaixador britânico em Lisboa nos últimos anos do reinado de D. João V, deixando-nos dúvidas sobre se ele era, de facto, iluminado:
“É uma pobre cabeça de Coimbra como nunca vi outra; sendo tão teimoso, tão obtuso, tem a verdadeira qualidade do asno(...) Só devo dizer que um pequeno génio que tem o intelecto para ser grande génio em um país pequeno é um animal muito difícil.”
Certo é que o Marquês reconstituiu Lisboa, perante a inacção de um rei escondido numa barraca, e reformou a Universidade de Coimbra, por onde ele passou fugazmente como estudante, perante alguma degradação do ensino jesuítico (muito exagerada nos documentos da reforma). Essas marcas ficaram. Mas não menos certo é que, graças ao controlo da Inquisição e da Real Mesa Censória, os livros de Voltaire e de Locke eram proibidos em Portugal no século das luzes. Em contraponto, a auto-propaganda do Marquês foi imensa. O país conservou, em muitos aspectos, as luzes apagadas, e essas marcas também ficaram.
Certo é que o Marquês reconstituiu Lisboa, perante a inacção de um rei escondido numa barraca, e reformou a Universidade de Coimbra, por onde ele passou fugazmente como estudante, perante alguma degradação do ensino jesuítico (muito exagerada nos documentos da reforma). Essas marcas ficaram. Mas não menos certo é que, graças ao controlo da Inquisição e da Real Mesa Censória, os livros de Voltaire e de Locke eram proibidos em Portugal no século das luzes. Em contraponto, a auto-propaganda do Marquês foi imensa. O país conservou, em muitos aspectos, as luzes apagadas, e essas marcas também ficaram.
É, por isso, muito difícil - e, além do mais, redutor - dizer quem são os bons e os maus nesta guerra entre o Marquês e os jesuítas. Passados 250 anos após a expulsão dos jesuítas, as feridas não estão saradas pois uma revista dos jesuítas comparava, há poucos anos, os métodos do Marquês com os que foram usados por Estaline e por Hitler. O recente romance do talentoso Almeida Vieira, escritor nascido em Coimbra (e formado em Engenharia Biofísica na Universidade de Évora, que foi outrora dos jesuítas), lê-se muito bem e é mais uma contribuição, sob uma forma nada convencional, para a análise de um período histórico em que Portugal, para o bem e para o mal, foi singular no mundo.
Posted by Carlos Fiolhais 2.06.2010 in De Rerum Natura
um blogue muito educativo.
ResponderEliminarMuito obrigada!
ResponderEliminarUm abraço!